NEM SEMPRE É O JORNALISTA que faz a melhor reportagem, o melhor perfil, a melhor edição, apesar de tudo isso ser produto jornalístico.
Chovo lindamente no molhado, mas fiquei com vontade de ulular o óbvio após ler o copioso, generoso e maravilhoso perfil da cantora Anabel Bian publicado pelo amigo e ex-professor de música Carlos Bozzo, o Dumbo, em sua coluna digital sobre música na Folha de S. Paulo.
Bozzo tem uma qualidade pouco vista entre jornalistas: não se coloca acima nem abaixo do perfilado – não o menospreza, não faz julgamentos à priori nem é sabujo do interlocutor.
Dumbo pode ter lá suas idiossincrasias, mas entre elas não está só olhar para a arraia-miúda, uma fixação romântica de certos jornalistas (ou, para ser mais preciso, de certos professores de jornalismo), como o perfil de Anabel pode sugerir.
Anabel se apresenta na praça de alimentação de um shopping popular de São Paulo, o Interlagos, e nada faz supor que um dia irá trocar essa série B do show business pela liga maior. O que, por outra, pode vir a acontecer.
Mas, assim como hoje fala de Anabel, amanhã Dumbo pode falar de Djavan. Ou, já que é melhor deixar o pessoal de Alagoas quieto, de Ana Carolina ou, vá lá, Céu.
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Apresento Dumbo aqui pois há dias procurava uma parábola que pudesse ilustrar um post de cunho moral – este.
É que nos três anos e fumaça deste pasquim tenho sempre encontrado iniciantes entusiasmados do cascalho que me dizem que aumentar ou dobrar suas distâncias máximas, fazer uma meia, um 15K, quiçá uma maratona parece-lhes sobre-humano.
Quando tento convencer-lhes do contrário, de que correr é uma atividade simples, inata, e seguir correndo por muitos minutos, às vezes horas, é igualmente simples e natural, eles parecem ver em mim um interlocutor já muito talhado pela experiência ou, menos mal, zombeteiro.
Enfatizo: não é necessário muito para ganhar boa quantidade de cascalho logo em seus primeiros tempos de corrida. É preciso, contudo, ver se vale a pena fazê-lo, se é isso mesmo que se quer.
Para mim o segredo de correr muito, se segredo há, é tirar do cascalho todo o prazer que ele é capaz de dar.
Sim, admito que até os dependentes de planilha são capazes de terminar maratonas e ultramaratonas. Não fosse assim, Cesinha Candido, que só treina com três cópias de igual teor de seu excel devidamente printadas, margens e tabulação escrupulosamente ajustadas, no bolsilho do calção, não seria hoje conhecido como o Novo Maratonista.
Mas o que vem depois?
Para mim é fácil sair por aí a atacar as dunas de Jeri, as porteiras de Cunha & Bolaño, o asfalto monótono da SC que leva ao Farol de Santa Marta. Não preciso do endosso de um programa de, como se diz, treinamento.
ABRINDO PORTEIRAS EM CUNHA, COM BOLAÑO (E UMA MARVADA) NA CABEÇA
A CORRIDA COMO SEU PRÓPRIO ÔNIBUS DE TURISMO
CORRENDO NA SAKURA DA MANTIQUEIRA
JERI
MARATONA, O FETICHE
É PRECISO DESRESPEITAR A MARATONA
Sim, há uma ou outra questão técnica a levar em conta. Mas pirâmide invertida, para voltar ao Bozzo, por exemplo, a gente aprende em meia hora.
(E sempre dá para cortar pelo lead, para citar o saudoso Jean-Yves).
Você talvez seja Bozzo amanhã, quando mal lembrar que vencer 25, 30, 40K pelas estradas da Mantiqueira um dia te botava bolado como o diabo.
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Ao escrever o primeiro parágrafo deste post, pensei no maravilhoso artigo de David Foster Wallace sobre um festival gastronômico anual do Maine, nos Estados Unidos, produzido a pedido da revista Gourmet (do grupo Condé Nast).
Wallace, que já partiu desta, era, como se sabe, ficcionista, mas faz uma apuração impressionante – e toda ela relevante, o que é ainda mais difícil – para esse Pense na Lagosta. Traço algumas considerações desenxabidas sobre ele no link abaixo.
PENSE NA LAGOSTA
Por não falar nisso, Bozzo já ficou muitos dias peregrinando pelo cascalho. Cruzou cidades, canaviais, dormiu em adros de igrejas e, qual don Juan, acomodou-se em alpendres de casas modestas.
Mas o negócio dele é caminhar. Até hoje desconversa quando proponho fazermos um trotinho manso no Jaraguá.