DECRETEI A MORTE DE CAETANO VELOSO em algum momento dos anos 1990, bem antes de ele se juntar à banda muito jovem que acabou por renovar sua sonoridade. O último disco que devo ter ouvido com atenção foi Circuladô.
Foi uma ruptura sem motivação clara, mas julgo não ter procedido mal em trocá-lo por seus pais artísticos Caymmi e Joao Gilberto e pelos pouco aparentados Pavement e Sparklehorse.
Simplesmente me desinteressei da lírica do baiano que, aparentemente, segue afiada.
Falo tudo isso para dizer que Caetano persegue a mim – e a muitos contemporâneos meus, quero crer –, como uma maldição.
Ou, por outra, como uma benção.
E isso se radicaliza em viagens para lugares como Jericoacoara, onde estive nestes últimos gloriosos quatro dias.
UM TREINO DE FORÇA EM JERI
BALOUÇANDO O BRAÚLIO EM TAMBABA
DO PERU
O ESPECIALISTA EM VIAGENS
UMA CORRIDA NO BROOKLYN
O compositor mais tocado nos barzinhos do vilarejo cearense, como em qualquer lugar do Brasil, quiçá do mundo, segue sendo Djavan, mas é Caetano quem vem a mente quando a gente pratica os atos mais comezinhos nesses lugares em que a etiqueta pede que se ande descalço e sem camisa.
Olhar a lua, por exemplo, que por estes dias no Ceará andou imensa e majestosa. Mal ela saía no exato momento em que o sol se punha no mar, por trás da duna, e vinham à cabeça os acordes de Lua, lua, lua, lua e também Lua e Estrela, e até, por que não, o refrão de Terra: “Por mais distante/ o Errante Navegante/ que jamais te esqueceria.”
Além disso, como numa reação pavloviana, basta olhar por um ou dois segundos deste Toyota que me leva de Jeri de volta ao aeroporto de Fortaleza para ver as casas tão verde e rosa que vão passando ao me ver passar.
E até, numa transposição político-geográfica, constatar que o estado de São Paulo é bonito/ Penso em você e eu.
A culpa pode ser minha, por ter estado tempo demais exposto à melodia maviosa do baiano, mas ela teve a manha de se fazer enfiar em compartimentos profundos demais do meu cérebro.
Entrei forte na onda do Caetano meio tarde, já na universidade, bastante pela influência benfazeja de uma ex-namorada, a Cris, que gostava de repetir aquela brincadeira que os fãs daquela época faziam com os títulos dos álbuns do compositor.
Jóia é jóia (o acento seria aposentado muito tempo depois), Totalmente demais é totalmente demais, Muito é muito, Qualquer coisa é… qualquer coisa.
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Tal como associar certa visão da natureza a uma música xis de Caetano tornou-se ato reflexo, desfrutar de um destino, dos mais aquinhoados pela natureza àqueles em que a selva é 100% de pedra, agora exige uma corrida.
Já me é impossível estar em qualquer lugar fora do meu habitat e não precipitar-me no cascalho, por mais que estas reportagens para publicações de turismo me tornem a agenda tão carregada quanto a de deputado do Centrão em viagem presidencial.
Se a gente não vê todos os cartões postais e come nos restaurantes estrelados, não vale.
Da ponte de Williamsburg às dunas de Jeri, das cidadezinhas à beira do Solimões à costa do Pacífico mexicano, é agora preciso correr para eu restaurar um certo equilíbrio psicológico – e calórico, também, claro, por amor de neutralizar o pargo grelhado, o camarão frito e a birita.
Negócio instigante é que, de todo o repertório de 49 anos bem ouvidos, nada – e nada é zero mesmo, niente, coisa nenhuma – me vem a cabeça durante uma corrida.
Pode ela durar 43 minutos, como hoje, minha despedida das dunas e dos alagados mais lindos do mundo, ou 3 horas e 40 minutos, tempo de minha primeira maratona em Essepê.
Talvez se eu me forçasse a montar playlists imaginários durante a corrida, quem sabe conseguisse ouvir mentalmente F Come Femme, Vou Botar seu nome no SPC, A day in the Life, Aos Pé da Cruz, Computer Love, os dois hinos da Portuguesa.
Ou troços completamente onomatopaicos, tipo Undiú.
Mesmo quando a coisa é muito explícita, quando a gente está sobre a música, por assim dizer, não há garantia nenhuma que a melodia venha. Nem mesmo clássicos toponímicos do nível de Ronda, Samba do Arnesto, Trem das Onze, Punk da Periferia, Garota de Ipanema, Saudade de Itapuã.
Se bem me lembro, nem mesmo Praça Clóvis, quando passei por ela (ou pela vizinha João Mendes), surgiu na minha mente numa corrida uns muitos domingos atrás.
É isso aí: corrida é uma espécie de meditação. E não exatamente aquela do Tom Jobim.