Convite ao prazer, parte 1

Paulo Vieira

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Não somos aquela revista que usa mais adjetivos que substantivos até em módulo 100, mas hoje é dia de editorializar. Pense este pasquim eletrônico como um velho jornal formato standard e o texto abaixo correndo em sua primeira página.

Este editorial diz sim ao hedonismo aplicado à corrida, e quer deixar isso patente.

Um especto ronda a corrida – o espectro do performismo. É preciso ser melhor. Baixar tempos. Performar. Ter um treinador e tomá-lo como um messias.  Matar-se em treinos intervalados. E correr em provas. Provas que ocupam sempre os mesmos circuitos, às vezes, horror dos horrores, pela Marginal Pinheiros.

Algo está se perdendo aí e não são só os 120 paus de cada prova ou os 200 por mês da assessoria.

É hora de voltar a pensar na corrida como no velho filme do Walter Hugo, não o Mãe, mas o Avó, o Khoury, o Bergman brasileiro: um convite ao prazer.

(Num sussuro quase inaudível) "10 de 400m a 90% de frequência cardíaca."
(Num sussuro quase inaudível) “10 de 400m a 90% de frequência cardíaca.”

Quando a endorfina se junta com a curtição pela cidade ou pela natureza, Grande, não tem pra ninguém. Pense nas melhores coisas do mundo: boteco, cama, Mozart, digamos. Comparável.

E já que começamos forçando a mão e plagiando o famoso manifesto, aqui vai outra cópia escarrada.

Nós acusamos  as marcas esportivas por criar um clima de “você pode sempre mais”, ou, como bem apontou o Ultraman neste texto aqui, um clima de que parar ou deixar uma prova pela metade é a suprema humilhação.

Nós acusamos os treinadores de corrida por não pensarem no mais basilar princípio quando treinam seus pupilos: de que é possível ganhar condicionamento físico com prazer.

Nós acusamos, de novo, os treinadores de corrida por fazerem da planilha a Bíblia; do treino de tiro, o Salmo 23.

Nós acusamos a indústria por empurrar goela abaixo o gel de carboidrato, quando uma fruta já resolvia a parada.

Nós acusamos os organizadores de corrida por incitar um clima belicoso do começo ao fim do evento, do slogan infeliz no site às placas com frases espúrias no quilômetro xis.

Nós te acusamos por preferir sempre os mesmos lugares para correr, quando a cidade e a montanha estão aí para ser 100% desfrutadas.

Nós acusamos todos nós por cairmos diariamente no conto do vigário da performance.

E eu, Paulo “Tiguês” Vieira, acuso Touro Indomável por ter deixado aquela conta gigante no boteco em meu nome.

(Continua)

 

 

 

 

 

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

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