Para ser sucinto, quase leviano, Correr, o mais recente livro de Drauzio Varella, mistura relatos de suas maratonas com interessantes informações médicas relacionadas ao esforço da corrida. E há reminiscências de infância e adolescência que são evocadas em suas corridas. Nada que surpreenda quem acompanha as colunas do autor no jornal Folha de S.Paulo.
Para mim, como deve intuir quem segue este pasquim, evocar reminiscências ao correr é quase um mantra. Se corrida serve para alguma coisa, é para destravar conteúdos afetivos perdidos na memória. Descrevi com carinho algumas corridas que fiz pela cidade aqui, aqui, aqui e aqui e fiz uma confissão apaixonada por esse nobre fim da atividade aqui.
Pois bem, o melhor do livro do médico-escritor é o capítulo “Love Story”. Para quem não conhece SP, trata-se de um puteiro numa travessa da avenida Ipiranga, na frente do icônico edifício Copan, puteiro grande e bacana, sem apelos sexuais excessivos, mais parecido com uma “balada”, como agora se diz por aqui, do que com um inferninho sufocante.
Varella, que corre comumente pelo centro da cidade, conta ali a história de um infeliz – ou, pelo contrário, de um feliz homem que conhece a paixão, a paixão por uma garota de programa de nome de guerra Pâmela. “A despeito da experiência adquirida com mais de cem garotas de programa, conforme contabilizava, a noite com Pâmela deixou saudades: ‘Passei dias com o sorriso dela na mente'”, escreveu.
Daí em diante, “encontrar a garota vira uma obsessão”, e isso só vai acontecer dois meses depois, num sábado. “Quando lhe disse que haviam estado juntos fazia dois meses, ela respondeu que mal se lembrava. Em lugar de sentir-se rejeitado, ele admirou-lhe a sinceridade: ‘Outra teria dito que eu era inesquecível'”.
Naquela noite, ele pagou a ela dois programas, o que Pâmela supôs que faria “com sorte”.
Na manhã seguinte, conheceu sua história. Pâmela nasceu na periferia de Manaus e casou-se aos 16 para se livrar do assédio do padrasto. Deu errado. O marido, de 50 anos, a escravizava. “Não tinha licença sequer para ir ao supermercado sem ele”. Com três anos de casamento, após ter o braço quebrado pelo marido numa surra, conseguiu fugir num barco da linha Manaus-Belém, “quase sem dinheiro, com a roupa do corpo”.
O final não é exatamente uma love story.
A história da primeira maratona do dr. Drauzio, Blumenau, 1995, é bacana, redunda em sofrimento desgraçado, assim como é bacana o relato da estreia tão desejada em Nova York. Mas em Correr a vida pulsa mesmo na avenida Ipiranga. Bom contador de histórias que é, dr. Drauzio há de concordar.