Há um programete na Rádio Cultura FM de São Paulo chamado Passeios da Memória. Nele, o poeta e jornalista Paulo Bonfim conta causos da São Paulo dos anos 1940, 50 e 60 permeados por figuras ilustres com quem privou e que hoje se contam às dezenas nas placas de ruas e avenidas da cidade.
Às vezes, o desfile de Prados, Andrades e Toledo Pizas é um pouco cacete, para usar um termo de época, mas em outras vezes esse notável octogenário-alto solta a lírica e volta quase ao útero de uma Pauliceia sem as bombas de 1932. “A manhã tem sabor de leite fresco (…) e a carrocinha de sorvete lentamente passa puxada pela eguinha de olhos mansos. Sob a calçada gira o pião da infância.”
Não é realmente bom, mas é bonito, ou ao menos evocativo, como, claro, não poderia deixar de ser. E evocar é tudo o que fazemos numa corrida, treino ou prova, quando não estamos preocupados demais em olhar o Garmin, as placas de quilometragem ou esperar a dor que certamente vai chegar no joelho esquerdo.
Não há nada mais gratificante do que voltar aos olhos mansos da eguinha quando ganhamos a rua. A rua tem o condão de despertar todo o poder evocativo que há em nós. Andar ou correr por ela é um momento sublime, ainda mais porque na equação entram endorfinas e uma deliciosa sensação de bem estar.
Se há algum propósito em correr, eis onde eu queria chegar, é para cruzar de novo esse portal da memória, para passear com Bonfim pela São Paulo de Pedro de Toledo e Armando de Sales Oliveira. Algo de que já fui mais useiro e vezeiro em dizer nos primórdios deste pasquim.
Tudo isso aqui é dito em razão de minha estreia na maratona, a problemática Mara de SP, neste domingo 17. A ideia é afastar da mente as placas de quilometragem do percurso, a síndrome da linha de chegada. A ideia é visualizar a cada esquina do monótono percurso os olhos mansos da eguinha da carrocinha de sorvete.
Ontem, a três dias do Dia M, num 12K – que o Fessô SX não nos leia – pela USP eu tive um bom augúrio disso. Apesar de estar num lugar tão pisado e repisado por mim, tive enorme satisfação ao ver a ZO de Sampa de cima do morro da Física, curti ouvir a percussão fora de tom dos futuros engenheiros na Praça do Relógio, acreditei que a deselegância discreta das meninas da ECA é atenuada no outono.
Em suma, foi uma corrida linda, do grande e luminoso caralho.
E note: numa conta de padaria, dessas que são feitas comumente pelo conselho da Petrobras, considerando apenas duas “rodagens” por semana nos últimos 15 anos, essa de ontem teria sido a minha corrida 1500 e pouco.
E a eguinha, pqp, comigo.
Neste último post pré-Mara pretendia falar de carboidrato, estratégia, dificuldades do percurso, batata do 35K. Serena del Favero, a notável nutricionista especializada nas demandas dos corredores, espera minha ligação.
Felizmente, Bonfim veio em meu auxílio.
Perdão pela insistência, mas, se há alguma razão em correr, e inclusive em completar uma maratona, é para divisar (como não usar “divisar”) os olhos mansos da eguinha.
Gui Cavallari, meu heroi, nosso heroi, disse tudo no livro Transpatagônia, que acaba de lançar. Vou fazer seu trabalho, caríssimo e preguiçoso leitor: vá direto à página 52. Tudo está lá. Era o quinto dia de sua sua viagem solitária de bike pela Patagônia. Eis o parágrafo luminar:
“Na ânsia de chegar, eu acelerava e passava marchas mais pesadas uma atrás da outra sem atentar para o terreno. As subidas eram leves, mas compridas o suficiente para me esgotar. Demorei a entender que o problema não estava na bicicleta ou no terreno, mas na minha atitude. (…) Reincidia no velho hábito de enxergar apenas objetivos e tratar os passos que compõem qualquer jornada como obstáculos. Se continuasse daquele jeito, dali a cinco ou seis meses na estrada eu bateria a mão na testa e exclamaria: “Já estou no fim da viagem e nem percebi… Como o tempo voa!”