Correr para não esquecer

Paulo Vieira

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Participante de uma Carrera de Miguel, em homenagem a atleta desaparecido na ditadura argentina
Corro porque não esqueço

Meu parceiro Hernan Reig escreveu de Buenos Aires:

“Meu querido irmão corredor, como estás?

Houve um tempo em que eu corria. Em 1986 eu dava voltas em torno à residência presidencial de Olivos, meu bairro, quando ali morava o Raúl Alfonsín. Uns 3K que eu fazia em 13′ aproximadamente, quando era adolescente. Tinha muita energia acumulada, evidentemente…

Sempre preferi os (outros) esportes à corrida, que precisa de uma paciência à prova de aborrecimento. Sou mais do tênis, do futebol e, ultimamente, como sabes bem – e como mesmo viste em São Paulo -, do pingue-pongue. Mas a cada tanto o corpo me pede uma prova física e eu a “cometo”. Termino exausto, mas satisfeito. As corridas que lembro mais nitidamente, como num belo filme de Hollywood, são três:

Uma no Chile, atravessando clandestinamente um campo de golfe ao entardecer, contigo em Pucón; outra entre morros na Guarda do Embaú, junto a dois amigos em pleno dia; e a última, ano passado, em São Paulo, à noite, cruzando a cidade por autopistas até chegar à USP. Você e o Barbão (Gesu Bambino, ainda com os pelos como nos tempos bíblicos) foram parceiros e testemunhas.

Tudo isso para dizer que a Argentina tem uma medalha olímpica, em Londres, 1948: Delfo Cabrera. Possivelmente o triunfo mais relevante de toda a nossa história no atletismo. Há imagens do bigodão chegando ao estádio de Wembley no YouTube, sem duvida.

Mas a historia que eu queria contar é outra: a do corredor Miguel Venancio Sánchez.

Miguel nasceu em 6 de novembro de 1952, décimo filho de uma família humilde de Tucumán, no norte da Argentina. Na sua adolescência, trasladou-se para Buenos Aires e jogou futebol nas divisões inferiores do Clube Gimnasia y Esgrima, de La Plata. Em 1974 abandonou o futebol para trabalhar no Banco de la Provincia de Buenos Aires.

Mas a sua paixão pelo esporte fez com que começasse a treinar atletismo e logo e se tornou federado no Independiente de Avellaneda.

Sonhava participar e participou da tradicional São Silvestre, cada 31 de dezembro, em São Paulo.

Outra coisa que ele gostava de fazer era escrever poemas. Um jornal de São Paulo, possivelmente o “Gazeta Esportiva”, publicou na semana da prova de 1977 o poema que segue:

Para você atleta

para você que sabe do frio do calor

de triunfos e derrotas

para você que tem o corpo são

a alma larga e o coração grande

para você que tem muitos amigos

muitos anseios

a alegria adulta e o sorriso das crianças

para você que não sabe de gelo nem de sóis

de chuva nem de rancores

Para você, atleta

que percorreste povos e cidades

unindo estados no teu andar

Para você, atleta

que despreza a guerra e anseia pela paz

O Miguel acreditava que a mudança politica seria conseguida com a participação e compromisso de todos. Por isso foi militante da Juventude Peronista, no sul da província de Buenos Aires, em Berazategui. E foi por isso que, poucos dias depois de voltar da São Silvestre de 1977, com 25 anos de idade, foi sequestrado por um grupo paramilitar numa ação que também vitimou vários outros jovens que militavam com ele na juventude peronista.

Até hoje ele continua desaparecido.

Miguel Sánchez, desparecido pelas mãos da ditadura argentina
Miguel Sánchez, desaparecido desde 1978

Em homenagem a ele, desde 2000 se organiza a “Corrida do Miguel”, em Roma. É uma competição que chama atenção para os direitos humanos. São duas provas, de 4K e 10K, como vocês dizem aí.

Em 2001, a “Carrera de Miguel” se realizou pela primeira vez na Argentina. Em 2005, começou a ser disputada anualmente em Tucumán, sua cidade natal, e em Berazategui, onde viveu. O slogan é “Corremos para no olvidar”. A partir de 2006, a “Carrera de Miguel” também chegou a Bariloche. Este ano, um torneio de futebol argentino, a Copa Argentina, foi chamado Copa Miguel Sanchez.

Há também a “Carrera de Miguel” de Buenos Aires, que, em março deste ano, juntou 6 mil corredores, um recorde de inscrições para as três distâncias (maratona, 8K e 3K).

Correr é um estado de consciência: concentração, ritmo e sacrifício. A consciência também faz a sua corrida.

Agora vou descansar. Escrever é como correr para mim. Fico exausto, mas satisfeito.

Grande abraço desde Buenos Aires, Cabra!”

H

P.S. – A história do Miguel e de outros atletas desaparecidos na ditadura argentina é tema do documentário “Atletas e Ditadura”, de 2007, dos brasileiros Marcelo Outeiral e Marco Villalobos. Outeiral, que trabalha na TV Globo, falará sobre o filme esta semana aqui no JQC.

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

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