Bastou falar que a Playboy iria lançar sua última edição em dezembro para nego começar a viver a síndrome de Ruy Castro, aquela do “No meu tempo é que era bom”.
Bom, em primeiro lugar, o anúncio de fechamento não é irreversível. Afinal, quem está dizendo que não edita mais a Playboy é a Abril. Isso não significa que algum louco, um mecenas ou um banco que não se importa com sua imagem não possam vir a assumir o título e os royalties.
O FIM DA ABRIL E DO LEITOR
Não trabalhei com Ruy Castro, mas também dei minhas cacetadas na Playboy. Acho que a reportagem que compartilho a seguir, publicada em 2001, é uma boa contribuição para a história da revista.
Se a modéstia e a indexação permitissem, também colocaria aqui um texto de 2 mil toques do Luis Fernando Verissimo para a sessão Prazeres Viajores (depois dizem que a Playboy boa era na época de seções com esse nome) que eu fiz caber em 200 toques sem comprometer, acho, o estilo do autor.
LFV, tamujunto.
E ainda sobre o Ruy Castro: eu o entrevistei para uma revista genérica da Playboy, a Principal, nos anos 1990, e o biógrafo da bossa nova a certa altura disse como ele fazia o “entrevistão” – havia um código Playboy para isso –, e era para o entrevistão da Principal que eu o entrevistava. Ou seja, ele deu a entender que o meu método caótico de entrevistar era bem inferior ao dele.
Devia ser mesmo, mas não lembro de ter pedido conselhos. “Esse é meu estilo”, eu disse.
Por falar em Principal, uma lágrima para seu editor, Milton Bellintani, que infelizmente deixou este plano outro dia.
Finalmente, Hemingway.
AO MESTRE, COM PORRADA
Todos os anos eles se reúnem num rincão dos Estados Unidos para celebrar a memória de Ernst Hemingway. Mas não querem saber de literatura. Preferem evocar os feitos viris do escritor. E encher a cara.
O lugar é fora de mão, mas todos os anos, num fim de semana de julho, eles estão lá. Alguns já chegam na terça, outros na quarta, sorrateiramente. Juntam-se e ficam à espreita, à maneira dos pássaros de Hitchcock.
De uma hora para outra, iniciam o movimento. Agora já ocupam as mesas e os balcões do bar Sloppy Joe’s. Com suas barbas e cabeleiras muito brancas, brincam com as garçonetes e entornam cervejas, sob vigilância lassa das próprias mulheres, que permanecerão contrariadas.
Uns, em regatas, exibem braços massudos, nem sempre musculosos. Deixaram pontos diversos dos Estados Unidos para se reunir nesse confim da Flórida, Key West, uma ilhota mais próxima de Havana do que de Miami.
EU E MURAKAMI – PARTE 1
Estão aqui, é a desculpa oficial, para evocar a memória do escritor Ernest Hemingway (1899-1961), que não tomam como ídolo literário, pois nada lêem, mas como paradigma de comportamento macho.
Faz sentido. Poucos são os que hoje passam a vida a abater leões, ter frenesis com a morte do touro numa tourada e fisgar peixes de duzentos quilos. E mais raros ainda aqueles que optam por encerrar uma carreira bem-sucedida descarregando uma 12 nas próprias fuças.
EU E MURAKAMI – PARTE 2
Não há muitas oportunidades de mostrar essas “qualidades” em público num país de correção política implacável. Na falta das aptidões atléticas, ostentar uma espessa barba branca já é um standard de masculinidade. Algo como ter tatuado no antebraço o famoso dizer “amor, só de mãe”.
EU E MURAKAMI – SAIDEIRA
Hemingway, que viveu em Key West entre 1928 e 1940, não tinha nessa época o shape Papai Noel que essa centena e meia de forasteiros que vêm a Key carregam. Na cidade onde escreveu As Verdes Colinas da África e Ter ou não Ter, o autor ostentava um bigode mais preto do que a asa da graúna antes mesmo do advento do Grecin 2000.
“A imagem que celebrizou ‘Papa’ é a dos seus últimos anos”, justifica Fred Johnson, 59 anos, um dos arquitetos da invasão sazonal dos cabeças-brancas a Key. Morador de Dade, perto de Orlando, ele é presidente de uma sociedade formada com o objetivo exclusivo de reunir, numa competição anual, sósias do Hemingway tardio.
UMAS PALAVRINHAS SOBRE A FLÓRIDA
Como campeão do concurso de 1986, tem direito a um lugar no júri, que irá, em três noites, definir qual desses cidadãos entrados em anos levará o título. Há os que se inscrevem em outras competições, como braço-de-ferro e pesca do marlim-sarado. A corrida pelas ruas fica para os mais jovens.
Johnson reconhece não ter lido muitos livros de Papa, e prefere falar em “irmandade” e “reunião de buddies para beber cerveja” ao justificar o encontro anual de seus camaradas. Seu amigo Larry Austin, 58 anos, de Palm Harbor, meneia o algodoeiro afirmativamente ao ouvir a palavra “lager”. Participava do concurso pela quarta vez, e pela quarta vez levava bomba.
Não chegou perto de ameaçar a conquista de Denny Woods, 62 anos, policial aposentado de Buckeye Lake, um rincão de Ohio a uns bons 2000 quilômetros dali, que especulou as razões da própria vitória: “Pode ter sido a nota de 100 dólares que eu deixei na mesa dos juízes.”
Embora seja um dos cronistas máximos de Paris, tenha vivido muito tempo em Havana e abreviado sua vida em Ketchum, no Idaho, poucos lugares do mundo tiram tanto proveito da figura de Hemingway quanto Key West.
A casa onde morou, ao lado do farol, e onde construiu o que seria a primeira piscina particular de Key, hospeda cinco dúzias de gatos que supostamente descendem dos felinos do escritor — seriam então umas boas 90 gerações até aqui. A visita à casa e ao pequeno estúdio anexo onde trabalhava, com a máquina de escrever e uma enorme cabeça de antílope em pontos estratégicos, custa 9 dólares.
O Sloppy Joe’s, bar favorito do escritor, mantém uma lojinha contígua com fotos, camisetas e outros artigos com a imagem bolachuda do velho Ernest. E, é claro, Key West sedia o concurso de sósias.
Bebidas vendidas hoje, como alguns coloridos e doces drinques à base de rum, não agradariam o paladar straight do autor, que, num dia bom, tomava quatro uísques-soda — e não uma quantidade incomensurável de daiquiris, como quiseram os biógrafos. Pouco ajudou, assim, na prosperidade de seu amigo Joe Russel, o tal “Sloppy Joe”, com quem saía a pescar marlins em águas cubanas.
Hemingway encontrou ali, na década de 30, uma cidade não muito diferente da que se visita hoje em dia. A presença cubana, que emprestou a Key um de seus mais profícuos arquitetos, um prefeito já no século 19 e uma próspera indústria de charutos, ainda é marcante.
Saul Lara, 48 anos, desde os anos 70 em Key, enrola charutos à frente dos clientes e responde desconfiado ao entrevistador. Graças ao embargo comercial, ele manuseia fumo dominicano, que tenta não desdenhar. “O tabaco cubano combina boa terra e boa semente, só isso”.
Bem, há coisas que mudaram nos últimos 60 anos. A fama da torta de lima, a Key lime pie, por exemplo, capaz de tornar verossímil uma figura como o confeiteiro Kermit Carpenter.
Carpenter fornece o produto para meia Key West, além de manter uma loja de lime pies e outros derivados da fruta — exceto a própria. “O gosto da lima de Key é mais forte, ácido.” O trem de onde Hemingway saltou para Key pela primeira vez foi varrido do mapa por um terremoto nos anos 30.
Por fim, o escritor dificilmente saberia o que dizer das dezenas de bandeiras e peixinhos com as cores do arco-íris à frente de hotéis e restaurantes. Nisso Key West mudou bastante, tornando-se uma das cidades mais gay-friendly dos EUA. “Nada que uma 12 não resolva”, talvez dissesse a respeito.