You may say i’m a dreamer/ but i’m not the only one. Um guarda-chuva amarelo com esse pré-histórico verso de Imagine, eis o que centenas de estudantes acampados nas ruas de Hong Kong ostentaram até hoje, quando a ocupação da região conhecida como Almirantado chegou ao fim.
Foram dois meses e meio de ocupação pacífica, com milhares de pessoas nas ruas.
“We will be back”, diziam as faixas deixadas no local onde aconteceu a chamada Umbrella Revolution – os guarda-chuvas também eram usados como proteção contra o spray de pimenta.
Os estudantes, a princípio comandados por Joshua Wong, de 18 anos, que chegou a começar uma greve de fome, querem o direito de escolher as autoridades de Hong Kong sem interferências do Partido Comunista Chinês, algo que havia sido acordado para 2017. O problema é que o PCC voltou atrás e decidiu indicar quem pode – e quem deve – ser votado.
Houve violência policial na segunda-feira e em outros dias de outras semanas, mas os gases tóxicos e os golpes de cassetete não ferem tanto quanto a violência política a que os chineses de Hong Kong e especialmente os da China continental estão sujeitos num regime de partido único e de liberdade de expressão tolhida.
O tradutor inglês Stephen Thompson, um tanto mais velho do que os campistas do Almirantado, tem três filhos que vivem na China. Sofia, de 12 anos, que mora em Hong Kong com sua mãe, a brasileira Bárbara, ex-estudante de letras da USP; e um casal de bebês, Alice e Daniel Chen, 1 e 2 anos respectivamente, chineses continentais.
Alice, a propósito, é ilegal, pois sua existência fere o controle de natalidade oficial do país. Para mudar sua condição de pária, é preciso que os pais paguem uma multa considerável e um deles se submeta a esterilização. Por ser estrangeiro, Stephen acha que os chineses exigirão que a companheira passe pelo procedimento.
As crianças e a mãe também foram obrigadas a deixar a pequena vila em que viviam, dizimada para dar lugar ao progresso, digamos. Mudaram-se para uma grande cidade, mas sem os mesmos direitos dos seus novos conterrâneos. Os tios de Alice e Daniel receberam imóveis como compensação pela destruição da antiga casa, mas a mãe ficou a ver navios: indenizações só são previstas para os homens.
Os filhos pequenos também não podem ir a Hong Kong, e Stephen me revelou já ter sido aconselhado a deixar o país. Acredita piamente que seu visto para a China continental não será renovado. Ele andou publicando artigos, em chinês e em inglês, que podem não ter agradado à burocracia.
Num deles, no Asia Sentinel, relata que o presidente e líder supremo chinês, Xi Jinping, pode ter plagiado outros autores em sua tese de doutorado. Cita no texto o escritor Joe Chung, que fez a acusação, e serve copiosos exemplos do suposto plágio.
Eu conheci Stephen em 1999, em Londres, para onde ele talvez volte, embora considere também retornar ao Brasil. Parece resignado em quedar-se longe dos filhos. Em Londres, seu pequeno apartamento em Earls Court dava para um daqueles maravilhosos private gardens, como o que Julia Roberts invade à noite no filme Notting Hill. Gostou quando eu apresentei a ele um porão nas imediações onde era servida uma tortilha espanhola, que hoje me parece bastante chutada. Na parede, uma Maya Desnuda grosseiramente pintada virou nosso trademark.
Em São Paulo, viveu com Bárbara num dos predinhos de Pinheiros do mesmo conjunto onde numa garagem hoje está o sebo do Ricardo Lombardi, o Alfarrabista. Na Bahia, encantou-se com a Chapada Diamantina, cujas estradas cruzou de moto.
Gostava de manifestar sua alegria em estar diante de um painel de rodoviária, com “todas aquelas opções de viagem”. Parecia encontrar naquele ambiente sua Xanadu. Não sei se tomou mesmo um ônibus a esmo.
Stephen pode não deixar uma biografia de revolucionário como alguns parceiros de Hong Kong ou até deste Le Rouge que o JQC entrevistou, mas sua vida tem sido razoavelmente coerente com o verso de seu guarda-chuva amarelo.