Júlio Serrão e o bem [e a dor] que a corrida traz

Paulo Vieira

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OS TÍTULOS ACADÊMICOS DO EDUCADOR FÍSICO Júlio Serrão, 48 anos, são copiosos e certamente atestam a sua grande expertise em educação física e na ciência do esporte no Brasil.

Chegar lá não deve ter sido fácil. Este pasquim acredita que educação física e nutrição – Júlio acrescenta a medicina – são as áreas preferenciais em que a ciência parece a cada momento querer pregar peças no cientista, negando liminarmente o cânone retirado à fórceps da véspera.

Numa palavra, espeto.

Desde março à frente da Escola de Educação Física e do Esporte (EEFE) da USP, onde também exerce a coordenação do Laboratório de Biomecânica, ele tem a missão de manter a faculdade relevante academicamente – segundo ele é uma das 20 melhores do mundo em sua especialidade.

Talvez mais importante do que isso, Júlio espera ajudar a criar uma ponte – uma pinguela já seria um bom começo, na minha opinião – entre a EEFE e a sociedade, difundindo o conhecimento produzido ali para muito além dos muros da Cidade Universitária.

O que é, desde sempre, a finalidade precípua da universidade, qualquer que seja ela. Mas o tempo disso parece ser novo e bastante desafiador.

“Precisamos preparar nossos alunos para liderar a educação física e o esporte em um novo mundo. Um mundo em que viveremos mais e nos movimentaremos menos. Um mundo no qual as relações virtuais ameaçarão cada vez mais aquilo que nos faz humanos: as nossas relações presenciais”, disse ele em seu discurso de posse na EEFE, sinalizando a batalha.

Júlio tem serviços prestados na difusão da atividade física junto às massas. Foi ele o responsável, junto com o então pró-reitor de graduação, Antonio Carlos Hernandes, de criar a disciplina optativa com maior número de alunos da USP, a Esporte na graduação: Teoria à prática I.

Ou PRG-001, como é conhecida nas internas.

Vinda a lume em 2017 com 5 mil vagas, foi a primeira disciplina efetivamente transversal da universidade, perpassando todas as faculdades e escolas.

Transversalidade ou multidisciplinaridade são hoje conceitos bastante “beaten track”, falados o tempo todo por teóricos e gestores da educação, mas lançar isso na USP foi incrivelmente revolucionário, nada menos do que, digamos, voltar do exílio e desembarcar na estação Finlândia.

Os alunos do curso, que consiste basicamente em dedicar algum tempo a uma ou mais atividades físicas de eleição (de “aquáticas”, como remo e natação, a “mentais”, como meditação e tai-chi chuan), vêm reportando, como era de se esperar, ganhos de disposição e de humor e redução de ansiedade.

O que se traduz, e essa é a grande notícia, em melhor produtividade acadêmica. A atividade física os tornou alunos melhores.

A parte teórica é bastante democrática e pode ser vista por todos, não só pelos alunos. É uma coleção de 22 vídeo-aulas sobre diversos esportes.

Veja-os você também aqui.

Serrão falou com o JQC por uma hora em sua sala, na EEFE. A conversa é longa, e será publicada aqui como um folhetim – por partes. Vamos à primeira delas.

Evoé.

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JQC – Deve ser bastante difícil fazer ciência na sua área. Educação física e nutrição parecem ser os campos em que a verdade de ontem pouco ou nada lembra a de hoje. Faz sentido o que digo?

Serrão – Não é essa a grande questão, educação física, nutrição e medicina são áreas em que isso [mudanças de paradigmas científicos] é mais evidente. Isso acontece porque as pessoas têm muito interesse nesses temas e interpretam muito mal os resultados.

As coisas não mudam, e isso é notório na corrida, em que um estudo novo é tomado como realidade absoluta esquecendo-se de que há um conjunto de dados anteriores, que aquilo [o novo estudo] é a peça de um quebra-cabeça que se soma para mostrar um cenário. 

Entendo que não se mudou de uma estratégia [como a antigamente canônica “Long Slow Distance”, que pregava apenas correr muito e lentamente] para outra, houve um entendimento mais amplo do mecanismo de treinamento. Daqui a 20 anos poderemos ter uma visão melhor desse quadro.

A ciência é muito da somatória das coisas que são produzidas.

JQC – Vou fazer algumas perguntas que são muito frequentes nos grupos e foros de corrida das quais nem consigo arranhar a resposta. Correr todo dia é bom?

Serrão – (Risos) Antigamente a gente achava que quanto mais o indivíduo corria, mais se aproximava da morte, associávamos lesão a volume, mas hoje se sabe que mesmo com um volume relativamente alto é absolutamente possível ser saudável do ponto de vista ortopédico e fisiológico.

A grande questão não me parece ser o volume total, mas o incremento do volume. O corredor que experiencia certa regularidade e mantém  incrementos razoáveis não vive um problema. O problema vem para o iniciante que corre 1K e logo já está inscrito para a prova de 5K.

Quando esse incremento não permite que o aparelho motor se ajuste, quando se dá a quebra de homeostase [o padrão de condicionamento a que todo organismo se adapta] muito rapidamente, quando o corredor desrespeita por completo o período de recuperação, que é absolutamente necessário para qualquer organismo vivo, quando você impõe uma rotina de corrida sem nenhum intervalo e sem nenhuma variação de intensidade, você coleta problemas.

JQC – Mas a corrida não leva no fim das contas a um desgaste necessário e inexorável, por exemplo, do joelho?

Serrão –  Não é só joelho, tudo desgasta, é um processo inevitável, mas do mesmo jeito que o estímulo excessivo provoca degeneração, o estímulo dentro da margem adequada promove utilização. Para falar de joelho: nosso principal problema é sem dúvida na articulação femoropatelar, onde aparecem as principais crises. Mas quando a carga de treinamento é adequada em intensidade e volume, você tem aumento de proteoglicana [proteína presente em diversas células] na cartilagem, que a deixa mais resistente.  

O problema é quando a linha é rompida, quando há um estímulo muito maior. Todo atleta anda no fio da navalha. Se usar um estímulo menor, não tem adaptação nenhuma; se usar um maior, tem lesão; se usar um estímulo ótimo, e é difícil conhecê-lo, esse que é o pulo do gato, você tem adaptação de tecido. Então a ósseo-artrose, que é o medo principal do corredor, ela acontece sempre quando volume e intensidade estão acima do adequado para aquele corredor. Não se trata de uma resposta inerente à corrida.

JQC – Pessoas mais velhas, de 60, 70 anos, para essas fazer maratona não é um pouco demais? O Nilson Lima, por exemplo, que tem 66 anos e chega a correr 3 a 4 maratonas por mês em média. Isso é saudável?

Serrão – Condição para continuar correndo a vida inteira a gente tem, toda a estrutura do nosso aparelho locomotor é absolutamente dimensionada para corrermos a vida inteira, e 42K não é um volume absurdo desde que respeitados os intervalos, desde que feita a preparação adequada. Graças ao aumento da expectativa de vida, não acho que causará espécie ver daqui para a frente muito mais gente participando de maratona. A ideia de que o corpo humano não foi feito para correr, como alguns filósofos defendem, não tem o mínimo apego teórico. 

JQC – Há um padrão de descanso adequado?

Serrão – Varia absurdamente de pessoa para pessoa. Quanto uns demandam tempo muito pequeno, outros demandam tempo muito maior. É muito fácil perceber isso, porque o corpo humano manda sinais claríssimos, o mais claro é o da redução de performance, você logo vê no pace. As dores também começam a aparecer. A que mais indica que o volume é excessivo é a tendinite – a patelar (joelho), a quadricipital (quadríceps) a de tendão calcanear. São lesões típicas de descanso insuficiente e de volumes altos demais. Todo o bom corredor sabe regular isso, sabe em que momento precisa parar para manter a saúde.

VEJA A CONTINUAÇÃO DESTA ENTREVISTA AQUI

 

 

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

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