ELE HAVIA MUITO estava longe destes pixels, e não dá para usar como desculpa a distância geográfica.
Desde que trocou o Rio por Berlim, há mais de um ano, Ricardo Henrique, o Maratonista Desencanado, não dava o ar da graça por aqui.
Pouco, ou melhor, nada soubemos de seus cascalhos sob a sombra das tílias ou interrompidos por patrulhas imaginárias nos checkpoints de outrora.
Mas a seca acabou, e ele aterrisa de novo neste JQC para nos contar de sua heterodoxa participação na mara de Berlim, a corrida do recorde mundial dinamitado por Eliud Kipchoge, que até matéria no Jornal Nacional deu – cortesia do incansável Guilherme Roseguini.
Solta o som.
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BERLIM É FANTÁSTICA, EM CADA ESQUINA a história está escrita em contornos nem sempre expostos. Certa vez, correndo em Grunenwald (a “Floresta Verde”), meu grupo parou à margem de um lago e o comentário de alguém me fez imaginar aquele verde todo servindo de lenha para as batalhas ali travadas.
Estima-se que existam mais de 8 mil bombas sob o solo da cidade. Ao serem encontradas, sua remoção (ou detonação) costuma paralisar parte de Berlim.
Dia desses houve um incêndio em outra floresta e os bombeiros só entraram em cena depois que tanques militares abriram o caminho. É uma área que tem muita munição soterrada, e o calor do fogo poderia causar detonações.
Assim, é difícil correr a maratona de Berlim sem imaginar como era a cidade, os velhos setores soviético, americano, inglês e francês que as forças aliadas ocuparam ao fim da Segunda Guerra.
Para pegar o kit neste ano era preciso ir a Tempelhof, o histórico aeroporto construído na terra dos cavaleiros templários que os nazistas transformaram num dos mais modernos e suntuosos aeródromos da época.
ESPECIAL MARA DE BERLIM – A VEIA CÔMICA DE KIPCHOGE
A GRANDE REPORTAGEM DE GUILHERME ROSEGUINI
MARATONISTA DESENCANADO NOS 10K DA ROCINHA
DA BARRA AO CRISTO, COM RICARDO HENRIQUE
UMA CORRIDA NO MODO SHUFFLE
CARNAVAL COM CRISTO
Não à toa a estação de metrô mais próxima da expo da mara chama Platz de Luftbrück – praça da Ponte-Aérea. Veio dali a salvação da lavoura da população durante o cerco soviético à cidade. Isolada por terra, Berlim recebia medicamentos, combustível e alimentos pelo ar.
Era preciso, afinal, garantir 1500 calorias diárias a 2.8 milhões de locais – 1,5 milhão a menos do que a população de Berlim antes da Guerra.
Em 2017 corri a maratona de Berlim pela primeira vez, e ao ver o portão de Brandemburgo que marca – eu achava – o fim da prova, não resisti e, mesmo sem ter mais forças, dei um pique de 200 metros para cruzar o monumento.
Foi aí que descobri que o pórtico de chegada exigia outro pique de 300 metros.
Ano passado corri Berlim com uma lesão no tendão de Aquiles, e, quando eu já pensava que não iria dar para completar, a Marta, uma amiga brasileira que também disputava a prova, me ofereceu uma novalgina de 1g, remédio que por aqui não se compra sem receita médica.
Foi o que me salvou.
Como o trajeto passa bem perto de casa, minha esposa e filhos me esperavam na Platz am Wilden Eber, onde fiz a melhor de todas as paradas técnicas.
Eu não estava correndo para baixar meu tempo, corria porque havia feito a inscrição por meio de uma associação beneficente que ajuda crianças com câncer.
Os últimos três anos têm sido de luta contra a leucemia do meu filho, e ao mudarmos para cá para dar sequência a seu tratamento, resolvi me inscrever.
Embora lesionado e sem a devida preparação, fiz a prova em respeito aos doadores dos quase 1 000 euros arrecadados. Levei mais de 5 horas para concluir a prova, recheada de grupos de rock, jazz, tecno e muita batucada brasileira.
Agora de volta a 2018.
Tudo é muito bom, bem feito, organizado, mas o melhor da prova é o povo incentivando o tempo todo o percurso inteiro. As pessoas gritam seu nome – que vai gravado logo abaixo do número de peito – e esticam as mãos para o “high five”.
Uma menina segurava uma placa que dizia “O Chuck Norris nunca correu uma maratona”. Foi a minha mais divertida maratona, até porque só corri 15K.
Me explico: nos últimos meses trago uma inflamação no deltoide do pé direito, que acredito ter sido causada por correr a temperaturas de -16ºC (sensação de -20ºC). Estava bem agasalhado, mas o tênis era, digamos, de verão.
A inflamação provocou o enrijecimento do ligamento, e meus amigos me divertem quando pedem para colocar a mão no local. Quando movimento o pé, um ruído de osso se esfarelando faz todo mundo ficar com cara de asco e me sugerir ir correndo para o primeiro hospital.
Já fui a médicos, fiz vários exames e radiografias e a prescrição é sempre a mesma: repouso.
Repousei tanto que ganhei peso e perdi toda a preparação que tinha planejado para bater o recorde de Berlim – o meu, claro.
Como me conheço, se largasse com a tigrada iria querer cruzar a linha de chegada de qualquer maneira, então me contive para não arrumar encrenca.
Fiquei meio desapontado comigo mesmo, e minha esposa então sugeriu que eu corresse de casa até a linha de chegada, uma distância facilmente tolerável.
A ideia me libertou, tirou todo o peso e responsabilidade de correr os 42,2K, e assim fiz. Acompanhei pela TV a largada e fui para a rua ver o Kipchoge passar flutuando na minha frente. Ao vivo é impressionante, um ser que não é desse planeta.
O dia estava ensolarado, até um pouco quente para os padrões locais, calculei a hora em que eu estaria passando por ali (em condições normais) e corri os últimos 15K da mara me divertindo, sem qualquer compromisso.
Ao cruzar o pórtico de chegada, recebi a medalha de “finisher”, que pensei até em devolver, mas seria uma atitude que daria muito trabalho explicar.
Costumam chamar a São Silvestre, que tem 15K, de maratona, então estes 15K em Berlim foram para mim a minha melhor maratona.