Devaneios de um corredor solitário

Paulo Vieira

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UM DOS POSTS DE QUE MAIS ME ORGULHO da já não tão curta história deste pasquim é o Corrida com Abramovic, link abaixo.

CORRIDA COM ABRAMOVIC

DA BARRA AO CRISTO

NA SUBIDA, COM BROCADOR RICARDO HENRIQUE

É A CABEÇA, ESTÚPIDO

GINÁSTICA PARA A CABEÇA

UMA CORRIDA LÍRICA NA USP

DON’T STOP ME NOW

Nele, inspirado em exercícios propostos pela artista sérvia Marina Abramovic, procurei relatar minuciosa e escrupulosamente tudo o que veio à minha confusa cabeça durante uma corrida solitária de curtos porém intensos 4K. Foi uma volta em torno da raia de Remo da USP.

Pois bem: propus a Ricardo Henrique, nosso corredor na Cidade Maravilhosa, que tentasse fazer o mesmo.

Brocador pegou com vontade o bastão e nos deu a seguinte devolutiva, como seu colega da área de marketing talvez dissesse.

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SÃO 5:30H, AINDA ESTÁ ESCURO, mas o calor já se apresenta em lufadas de ar quente e úmido derrubando folhas e pequenos galhos que se acumulam entre os paralelepípedos. Mal começo a correr e os primeiros pingos de suor escorrem pelo rosto.

Acompanhando o contorno da rua encontro um gambá que me ignora e segue seu caminho.

Aperto o passo, vejo faróis à distância, atravesso a primeira parte da avenida, estranho os poucos carros, mesmo a esta hora. É feriado.

A rua que vai dar na ponte está deserta. Horário de verão, temperatura de verão, nem a brisa do mar pra refrescar. Constato com certa surpresa que a reforma nos quiosques até que ficou boa.

Uma garrafa de vidro na ciclovia me faz parar para jogá-la no lixo. Vai junto o copinho plástico com resto de sei lá o quê. A festa deve ter sido animada.

De novo no cascalho, sinto o joelho direito, velho reclamão.

O suor já escorre pelos braços e começa a pingar pela aba do boné. Fixo o olhar na montanha que se permite apenas exibir a silhueta. Ali brota uma luz tímida que perfura a formação de nuvens. Previsão do tempo para o Rio: sol de fritar ovo no asfalto.

Vinte e cinco graus, avisa o termômetro digital. Sensação térmica de trinta e fumaça.

Cumprimento o vigia da barraca de kitesurfe em sua cadeira à beira da ciclovia no momento em que um grupo de bikes passa escoltado por um carro.

Foto: Peter Heilmann/Flickr
Foto: Peter Heilmann/Flickr

A camisa já vai toda grudada ao corpo, a novidade agora são as meias encharcadas: “Tá tão quente assim ou dormi com o ar condicionado gelado?”

Aos 4K não cheguei ainda ao quebra-mar. No Corpo de Bombeiros, um soldado se prepara para o fit matinal. Ninguém jogando futvôlei, nada de pelada.

Dia estranhamente vazio.

Depois de duas semanas sem internação hoje passaremos o dia inteiro na clínica.

O pensamento aí se fixa e com ele sigo até o final do píer de pedra do quebra-mar. Alguns pescadores, muitos gatos, cocô de gato, resto de peixe. Finalmente sinto uma brisa vinda do mar que refresca.

Paro um instante e olho a relação insidiosa da areia com o mar, as valas à espreita dos desavisados, quantas vezes já vi essa cena?

Tento esvaziar o pensamento.

Não bebo nada em treinos de até 10K, mas sinto vontade de tomar uma água de coco.

Destravo o relógio, meu batimento cardíaco volta a crescer. Penso que os 6K passaram muito rápido, como se eu houvesse andado pelo vácuo.

Novos bons dias, novos acenos com a cabeça e com as mãos: o movimento aumentou. Vai dar praia!

Os caminhões começam a procissão da entrega de cadeiras, gelo e demais mercadorias demandadas pelos  banhistas.

Quando Christian tinha 3 ou 4 anos, eu o pegava na academia no fim da tarde e o trazia para brincar na areia, na beirinha da água, até o sol se por. Hoje a baixa imunidade já não permite.

Lembro certa vez em que ficamos vendo os bombeiros treinando um resgate de helicóptero.

O cascalho chega aos 8K e vejo o hotel onde a seleção da Itália ficou hospedada durante a Copa das Confederações; naquele outro ficou a Holanda – ou será que foram os Estados Unidos na Copa do Mundo?

Não faz diferença. Ônibus ornamentados com as respectivas bandeiras estavam sempre estacionados defronte.

É um tumor. Serão duas cirurgias, uma para embolização e outra para retirada da…

Os carros parados no sinal. Vai ser dada a largada. A moto dispara na frente.

– Bom dia!

Quase chegando ao ponto de retorno, vou negociando com o semáforo para não ter de parar. Nem sempre funciona, mas hoje deu bom, atravessei as duas pistas sem ter de diminuir a passada.

Estou com menos fôlego ou essa ladeirinha da ponte cresceu?

Terra, asfalto, pedra portuguesa, três senhoras fazem um paredão na calçada que me obriga a pular para a rua. Volto para a calçada, cruzo a avenida das Américas e entro de volta no meu condomínio.

– Seu Ricardo, e o Flamengo ontem, hem?

– Pois é, mas e o Vascão, pelo jeito não tá tão fácil voltar pra A…

Viro a curva e encontro novamente o gambá, que agora me olha desconfiado e corre pelo meio-fio. Talvez não fosse o mesmo.

O relógio indica os 10K e corro mais uns metros até o portão de casa. Dois enormes golden retrievers me recebem querendo brincar. Ou, como é mais provável, querendo a velha ração que os deixavam obesos e que minha filha me proibiu terminantemente de dar.

– Desculpem, mas a Tata não deixa.

Antes do banho, suspiro longamente. Está para começar a maior de todas as maratonas, e dessa eu só participo na equipe de apoio.

Vamos assim, um dia após o outro, até vencermos essa leucemia linfoblástica aguda.

Meu filho está com 13 anos.

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

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