Uma placa amarela onde está escrito “Olá, venha aqui e fale com estranhos”, uma câmera e, suponho, dois banquinhos. É com esse modesto arsenal que a jornalista Adriana Negreiros e o designer Daniel Motta fazem o fino do jornalismo.
O fino e a essência do jornalismo: a entrevista. A dupla ouve o que chamávamos de “populares” nas ruas e publica o registro dessas conversas no canal que eles mantêm no YouTube, o Fale com Estranhos.
Tudo sem patrocínio, de maneira diletante.
O resultado são confissões emocionadas de cerca de 3 minutos, algumas pouco verossímeis, embora não se tenha porque duvidar de alguém que se dirige espontaneamente a dois estranhos, atraídos apenas por uma placa, e se deixa filmar falando coisas íntimas.
Castor, por exemplo, um senhor de 55 ou 60 anos de longas barbas brancas e senso de timing para contar histórias, diz que apanhou do pai três vezes, a primeira por ter ido jogar bola “longe”; a segunda por não ter voltado para tomar banho após um jogo – era sua “alegria”; a terceira, “porque meu pai era racista e não queria que eu brincasse com negro”. “Pra ele, meu amigo era preto”, diz.
Fábia, “pessoa nordestina e muito feliz com a vida”, chora durante o depoimento ao expressar a saudade de sua terra e as dificuldades que enfrenta em São Paulo, “cidade extremamente competitiva, onde é preciso força de vontade e coragem para ir até o final”. O final, não fica claro, seria seu retorno à cidade natal, onde transmitiria então a “experiência acumulada para as pessoas mais sensíveis de lá”, especialmente a mãe e a sobrinha.
Adriana e Daniel não se preocupam em dizer qual é a cidade em questão, assim como não revelam sobrenomes ou idades. O lead está em outro lugar: no valor intrínseco dos depoimentos ou na linguagem corporal, nas pausas, nas engasgadas, na assertividade, na lágrima.
Tudo começa com a pergunta: “Quem é você?”
Ecos de Eduardo Coutinho aparecem: na estética, nos cortes para cenas que serviriam a um making of enquanto o depoimento segue correndo; e, principalmente, na ética: na delicadeza e respeito pelo entrevistado, que se intui a cada frame.
As perguntas não são ouvidas, como no programa “Ensaio”, da TV Cultura.
(programa também conhecido nas internas por Feijoada, por sempre mostrar partes – orelha, dedos, muque – do entrevistado).
Adriana, que trabalhou com Daniel na revista Playboy, se acostumou a extrair confissões de celebridades para os entrevistões da revista. Ficou famosa a associação entre sexo anal e prazer sexual de Sandy. “Sempre entrevistei figuras célebres com alegria e prazer. Mas no Estranhos, talvez por ser uma novidade, o prazer tem sido maior. Isso porque as regras do jogo são outras.”
Quais?
“Numa entrevista convencional, é comum que o repórter saiba tanto sobre o sujeito que nada é surpresa. Aqui eu não sei rigorosamente nada sobre a figura que se senta à minha frente. Tudo o que ela me fala me surpreende. E as figuras comuns não têm, via de regra, o discurso pronto e ensaiado comum às celebridades.”
Antes de “Estranhos”, Daniel viveu uma experiência prototípica. Em 2012, deixou urnas por locais de São Paulo em que pedia: “Me dê um conselho”. Disso surgiu o livro “Me dê um Conselho”, com a reprodução dos dito cujos e a caligrafia original dos autores. Você pode vê-los aqui.
A ideia de “Estranhos” se consolidou nas viagens que a dupla, hoje sócia de uma produtora de conteúdo, o Estúdio Braba, fez pelo Brasil para gravar depoimentos para o Prêmio Claudia. “Nas cervejas que tomávamos nos confins do mundo, sempre falávamos sobre quão bacanas eram os personagens secundários que cruzávamos: a indiazinha kaiowá tímida, o recepcionista galã do hotel em Belém, o barqueiro que nos conduziu pelo rio Amazonas”, diz Adriana.
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Esta informação talvez tenha bastante relevância para o meu público-alvo, mas vai mesmo no pé:
Daniel perdeu 60 kg em dois anos. Mais que o Mandrey.
Farei uma “suíte” sobre isso. Mas aqui já vai um teaser:
“Teve uma época que eu só comia ricota à noite. Pura, com um pouco de sal. Era foda.”
Abaixo, o “Estranhos” com Castor.