Meu heroi, nosso heroi

Paulo Vieira

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Guilherme Cavallari é o cara que eu e a torcida do Flamengo gostaríamos de ser. Trocou São Paulo (ou “a cidade”) por Gonçalves, na Mantiqueira, para, o verbo é dele, “viver”. Na “cidade” não era mais possível ter o principal, ou, quem sabe, o único ativo de que necessitava – de que necessitamos – para viver: tempo.

Conhecido no circuito “Go Outside” pelas dezenas de guias de trilhas para trekkers e ciclistas que publica por sua editora Kalapalo, ele hoje ministra ou promove cursos distintos, de mountain bike a sobrevivência na selva, e organiza expedições em que passa dias com seus pupilos caminhando e escalando e noites metido em sleeping bags.

Ciclistas solitários são mais felizes
Ciclistas solitários são mais felizes

Em Gonçalves, para nossa sorte, decidiu compartilhar o sítio que alugou, transformando-o no melhor refúgio de montanha da Mantiqueira, o Refúgio Kalapalo. Não me hospedei lá, mas coloco minha mão no gelo por essa afirmação.

Recentemente, Guilherme passou seis meses pedalando sozinho na Patagônia, na Argentina e no Chile. De Bariloche até Punta Arenas, Ushuaia e Terra do Fogo, ida e volta. Uma história com poucos personagens: ele, sua bike – bem melhor que estas daqui -, o vento enfurecido e alguns pumas que rondavam sua barraca em algumas noites (se não rondavam, relevem: é um belo recurso ficcional). Houve, e isso não é ficção, tempo suficiente para preencher um diário, e o livro que resultou dele está no prelo.

É ele o personagem do JQC Entrevista, quadro que acabei de inventar, desta sexta. E, fiel ao nosso jornalismo pirâmide desinvertida, o melhor está no final, quando ele fala de qualidade de vida, ou melhor, “vida, simplesmente”. Eu tentaria chegar ao final deste texto. Não precisa ser hoje. Estaremos aqui, neste mesmo www. Prometo.

***

JQC – Você sempre aproveitou seus fins de semana e talvez os dias úteis para viver em contato com a natureza. Muita gente gostaria de fazer isso, mas não faz. O que diria para eles, digo, para nós?

Guilherme – Acampo desde os 7 anos e na adolescência, com um grupo de moleques, desbravei lugares por aí. Dormi sem barraca no topo da Pedra do Baú, acampei na Represa Billings. Para mim, a natureza é fundamental. Acho-a nossa única realidade. Quando o ser humano destruir totalmente os ambientes 100% naturais do planeta, terá perdido a única oportunidade de realmente se conhecer por completo. Sem algum antagonismo não há como nos espelharmos e entender como crescer. Todos os demais seres vivos, inclusive os microorganismos, vivem a vida. Nós vivemos a consciência da morte. Nossas ações mais comuns são desconectadas da vida, da união com os demais seres vivos, da interdependência que nos une a todos. Nosso maior potencial (humano/espiritual) está em viver em harmonia. Quanto nos conectarmos com a consciência da vida, entendermos que somos parte de um todo, que somos responsáveis (e não proprietários), estaremos no rumo certo. O contato com a natureza é o primeiro passo nessa direção.

JQC – Você mudou sua vida indo viver em Gonçalves? O que pode dizer, muito sucintamente, dessa opção? Quais os prós e contras?

Guilherme – A vinda para Gonçalves foi a fuga da cidade. A cidade alimenta desejos e falsas necessidades. O objetivo da cidade é consumir. Tudo o que é produzido é comercializado na cidade. O problema é que a commodity mais consumida é o próprio ser humano. O combustível que mantém a cidade viva, acesa, ruidosa, pulsante, não é energia elétrica, os combustíveis minerais, o vento ou o sol, mas o ser humano. Nosso maior patrimônio e riqueza é nosso tempo, nossa liberdade. Justamente o que ninguém tem nas cidades. Usar nosso tempo para crescer, amadurecer, aprender, ensinar, compreender e atingir nosso potencial máximo é a missão de todos e cada um. Ou pelo menos deveria ser. A cidade não favorece isso. Na roça, ninguém precisa de dez pares de sapato; e a cor de seu único par nem é relevante. Ter tempo para ouvir uma história, aprender algo, conhecer alguém, isso vale muito mais do que ter dinheiro para comprar um relógio novo para a coleção. Mas o principal de viver na roça é entender que o tempo não existe de fato, que existe uma vida a ser vivida e que é nossa responsabilidade fazer o melhor possível dela. Aqui a mente consegue produzir um pouco de silêncio. Quanto alívio!

JQC – Você faz algo que pouca gente faz, que é capacitar pessoas comuns a viver (e sobreviver) na natureza. Acredita que teus alunos multiplicam esse conhecimento – ou, mais modestamente, aplicam esse conhecimento? Essas pessoas convivem com a natureza mais intensamente depois?

Guilherme – Você começou bem a pergunta: “você faz algo que pouca gente faz”. Esse é talvez meu maior (se não o único) ‘orgulho profissional’. Não por achar importante o que faço, mas porque o que faço foi inventado por mim. A criatividade e a imaginação são nossas mais importantes ferramentas de trabalho. Como então, eu me pergunto todos os dias, milhões, bilhões de seres humanos repetem as mesmas ações diariamente, sem questionamento, criatividade ou imaginação? Minha conclusão: deixamos de ser humanos. Tudo o que tento com meus livros, com a editora que criei, os cursos que ministro, os treinamentos e expedições que organizo, é empurrar as pessoas a ser mais aventureiras, mais exploradoras. Ensino técnicas de navegação, de acampamento, de deslocamento, de planejamento, de preparo, de realização, mas o que quero ensinar é liberdade e ousadia. Meu maior “sucesso profissional” é receber um email de um ex-aluno dizendo que viajou por conta própria e que passou “uma semana sozinho acampado ao lado de um rio longe de tudo e de todos e, tirando o que deu errado, o resto deu certo”. Esse daí entendeu minha mensagem!

Só falta o crucifixo neste quarto do Refúgio Kalapalo, mas o preço e todo o resto compensa
Só falta o crucifixo neste quarto do Refúgio Kalapalo, mas o preço e todo o resto compensa

JQC – Qual a grande dificuldade que as pessoas encontram em teus cursos de GPS, trekking e mountain bike? Novatos podem se dar bem?

Guilherme – Quem me procura para um curso já está “fisgado”, já entendeu que o contato com a natureza tem importância na sua vida. Eu semeio em terreno fértil. A maior dificuldade de todos é, sem dúvida, a “zona de conforto”. Luz elétrica, banheiro, sinal de celular, internet, casa, comida pronta, cama. Acham isso essencial, e não é. Em nosso curso de trekking, por exemplo, fazemos acampamento selvagem e nada falta! Se o aluno toma a experiência como algo pitoresco, divertido, interessante, eu não atinjo meu objetivo. Se o aluno vê a experiência como um laboratório, e expande a vivência, bingo!

JQC – Creio que boa parte do que você faz envolve uma dose de altruísmo e também uma vontade de difundir uma mensagem positiva. Existe algum tipo de “pregação” aí? As pessoas saem melhor depois de fazer seus cursos? A propósito, há como as pessoas evoluírem, minimamente que seja, em qualquer coisa?

Guilherme – Pregação nenhuma. Acho que o exemplo fala mais alto. Eu ganho dinheiro com o que faço, vivo desse trabalho há 15 anos e posso dizer que vivo bem – o que não implica estar rico. Mas esse nunca foi meu objetivo. Eu quero viver bem todos os dias, com liberdade e muito, muito tempo livre! Aposentadoria para mim é uma falácia. Eu quero trabalhar pouco a vida toda e não precisar me aposentar na velhice. Muita gente que visita o Refúgio Kalapalo fica impressionado com o que chamam de “qualidade de vida”. Eu chamo simplesmente de “vida”. Sem “qualidade” não há vida, por isso não entendo essa expressão. As pessoas se chocam quando sabem mais da minha vida, quando vêm dividir algum tempo comigo aqui.
Na verdade, acho que elas se chocam com a vida que levam.

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

Um Comentários

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    Alessandro Loiola

    Tive o prazer e a honra de compartilhar treinamento e uma extraordinária aventura na Patagônia com alguns grandes amigos sob a liderança do Guilherme. É uma experiência modificadora e mais que recomendável, para todas as faixas etárias. Ele, Adriana, Bela, o Refúgio, a paixão pelo Trekking, são todos personagens improváveis que merecem admiração e – if you have the guts! – uma visita. Go Guidjermo ! 🙂

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