Detetives sensíveis

Paulo Vieira

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Miguel Sanchez, desparecido pelas mãos da ditadura argentina
Miguel Sánchez, que desapareceu sob a ditadura argentina

O JQC mostrou semana passada, num texto epistolar redigido pelo artista conceitual e vagabundo profissional Hernan Reig, meu grande amigo, a trajetória de Miguel Benancio Sánchez, que disputou as corridas de São Silvestre de 1975 a 1977 e que desapareceu pelas mãos da ditadura argentina ao voltar para a sua casa, na Grande Buenos Aires, em janeiro de 1978. Hernan se sensibilizou com a história, com os poemas que Sánchez escrevia e com a realização das várias “Carreras do Miguel” na Argentina e em Roma. Mas Miguel também foi um dos personagens do documentário “Atletas e Ditadura”, de 2007, feito por Marcelo Outeiral e Marco Villalobos, um trabalho feito com recursos próprios e nas férias da dupla. A produção está disponível aqui e aqui, no YouTube, numa versão reduzida. Os dois continuaram com seu trabalho de detetives sensíveis e logo depois da produção do documentário descobriram a mão da Operação Condor no desaparecimento de Sánchez. Marcelo, que é editor do “Fantástico”, falou com o JQC.

JQC– Por que o foco dos atletas desaparecidos argentinos?
Marcelo Outeiral – É preciso definir um recorte, e esse tema esporte x ditadura é amplo demais para um média metragem. Acho que não conseguiríamos trazer um retrato fiel do que aconteceu no Cone Sul, principalmente por se tratar de um trabalho independente, com dinheiro do próprio bolso e durante as férias do trabalho. Foram três dias intensos de gravação, com equipamento emprestado. Nada podia dar errado. A opção pela Argentina pode ser explicada por ser o país com o maior número de atletas desaparecidos. Não posso negar que trabalhar apenas com um país foi um pouco frustrante. Durante os quase dois anos de pesquisa, levantamos casos de esportistas desaparecidos em toda a América do Sul. Campeões de boxe no Uruguai, medalhistas pan-americanos de ciclismo no Chile… Traçamos um mapa bem representativo desse processo covarde e imperdoável que foi a caça aos atletas. Muitos deles, como os que mostramos no documentário, não tinham uma participação tão ativa na militância. Distribuíam panfletos, eram filiados a partidos políticos, só isso. E esta é uma das diferenças entre o Brasil e a Argentina. No Brasil, atletas promissores, como Helenira Rezende, jogadora amadora de basquete, e o próprio Stuart Angel, campeão de remo, abandonaram a carreira para entrar firme na militância e, em alguns casos, até mesmo na luta armada. Pelo menos 15 jovens esportistas brasileiros, federados, deixaram a segurança do pódio para enfrentar este adversário cruel que foi a ditadura militar. Não virou documentário, mas o que aconteceu nesses países (Uruguai, Chile e Brasil e Argentina) foi tema de uma série de reportagens no extinto site “Tribuna da Rua”, um experiência independente com os colegas Lucio de Castro, Fellipe Awi, Guilherme Roseguini e João Pimentel. Eu e o Marco Villalobos também fizemos algumas matérias para “O Globo”. Mas é um tema inesgotável, tanto que o Lúcio de Castro acabou de fazer uma série especial para a ESPN Brasil. Um trabalho maravilhoso.

JQC – Vocês só falaram com parentes e amigos. Não tentaram falar com os militantes que sobreviveram e viram mais de perto os esportistas citados no documentário?
Outeiral – Muitos destes amigos foram também militantes. O Raul Barandiarán, do La Plata Rugby, por exemplo, também tinha sua vida política. Talvez tenha tido mais sorte ou cautela do que seus amigos mortos.

JQC – A Copa do Mundo de 1978 é citada pela irmã de uma desaparecida. Não pretenderam explorar mais esse evento?
Outeiral – A Copa de 1978 já foi bastante documentada, embora ainda tenha muita coisa para ser esclarecida. Não era o nosso foco. O documentário “1978 – Verdad o Mentira”, de Christian Remoli, diz muito sobre a relação do presidente argentino à época, Jorge Videla, com a FIFA.

JQC – Os parentes visitados já não se emocionam, já estão familiarizados com as perdas e de falar delas? Ou, nos bastidores, houve muita emoção? Foi difícil falar com eles?
Outeiral – Todos os parentes nos receberam muito bem. Abriram suas casas, seus arquivos e, o mais delicado, seus corações. Mas foi muito difícil. Não é um simples jogo de perguntas e respostas. É delicado. Aquelas pessoas contaram a história de parentes queridos de destino ignorado. A dor da mãe de um desaparecido é algo impossível de medir. Muitos desses parentes nos contaram que só queriam ter a chance de enterrar seus filhos. É duro demais ouvir isso. Mas é um trabalho que precisa ser feito. Por isso a opção de fazer um documentário sem off, sem muito didatismo histórico. Estas histórias precisam ser contadas para que nunca mais se repitam.

JQC – No começo do filme, o presidente Jorge Videla faz um pronunciamento à seleção argentina de rúgbi sugerindo que os jogadores serão “embaixadores” no exterior. O que é isso?
Outeiral – A seleção de rúgbi estava partindo para uma turnê na Europa. O discurso do Videla é um símbolo do cinismo. O La Plata Rugby estava sendo dizimado e ele falando da importância do esporte.

JQC – Já que fizeram o documentário com dinheiro próprio, não era melhor esperar? Logo depois vocês descobriram a conexão do desaparecimento do Sánchez com a Operação Condor. O que mudaria no filme se fizesse agora?
Outeiral – Estava tudo apurado. Todos os contatos feitos. Não dava para ficar esperando Lei de Incentivo, patrocínio… Tem vezes que você precisa botar o bloco na rua. Ir lá e fazer. Essa é a força de um trabalho independente. O Marco Villalobos e o Milton Cougo (diretor de fotografia) são dois jornalistas que também adoram ir para a rua, contar histórias. Foi um momento importante para nós. Hoje, 2013, talvez a gente mudasse alguns aspectos na edição e/ou no roteiro. Gostaria de ter trabalhado melhor a divulgação. Editar com mais calma. Mas quando você depende da boa vontade e da parceria dos amigos, o mais importante é concluir a obra com responsabilidade e respeito. Enfim, mudaríamos alguns detalhes. Normal. Muita coisa mudou de 2007 pra cá.

JQC – Dos 30 mil mortos e desaparecidos da ditadura argentina, quantos eram esportistas?
Outeiral – Os jornalistas e historiadores argentinos não param de pesquisar o tema. Em 2007, achávamos que eram cerca de 20. Esse número subiu para 30, e hoje talvez já esteja na casa dos 50. Até hoje trocamos informações e dados.

JQC – A irmã do Miguel fala no filme que seria lindo ter uma “Carrera do Míguel” no Brasil. Já houve alguma tratativa para isso? Por que começou em Roma?
Outeiral – Não sei se dizer, mas seria lindo mesmo. A prova começou em Roma porque foi um jornalista italiano que ‘descobriu’ a história do Miguel Sánchez.

JQC – O documentário é de 2007, e vocês falaram com a fonte gaúcha sobre a Operação Condor logo depois. Não conseguiram essa informação antes ou não era o caso de se estender sobre esse assunto no filme?
Outeiral – Continuamos investigando mesmo depois do documentário pronto. As peças do quebra-cabeça se encaixaram melhor e descobrimos o envolvimento da Operação Condor no desaparecimento do Miguel. O jornal “O Globo” aceitou entrar na história. Teve grande repercussão na época, principalmente, claro, na Argentina.

JQC – Qual é o próximo passo da dupla?
Outeiral – Fizemos alguns curtas depois disso. Outros trabalhos independentes, sempre com essa temática de direitos humanos. Mas o Marco mora em Porto Alegre, eu moro no Rio. Fica difícil.

JQC – Por fim: quem são vocês?
Outeiral – O Marco Villalobos é de Porto Alegre. Jornalista com passagens pela RBS TV (repórter e editor-chefe) e pela Band (chefe de redação e editor-chefe). É doutor em história. Tem diversos prêmios e dois livros publicados. Hoje, dá aulas de jornalismo na PUC-RS. Foi, inclusive, meu professor lá – e depois meu chefe na RBS TV. Eu também sou de Porto Alegre, formado pela PUC. Trabalhei como repórter na Band e fui editor na RBS TV. Trabalho no esporte da Globo Rio desde 2001. Fui editor de esporte do Jornal Nacional e editor-executivo do “Globo Esporte”. Desde 2010, sou editor e roteirista do “Planeta Extremo”, exibido no “Fantástico”.

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

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