É difícil um especialista não se tornar um chato – melhor dizendo: é difícil um especialista não parecer um chato. Um sommelier, ou, pior, alguém com algum nariz e paladar para perceber “notas amadeiradas” dificilmente vai gerar empatia com seu interlocutor, sua audiência. Tudo isso para dizer que me sinto meio picareta quando começo a usar jargões como “quebrar”, “coelho”, “sub 4” e talvez o pior de todos, “quadríceps”.
O mundo da corrida tem disso. É fácil começar a correr por conta própria e logo ser catapultado a um universo paralelo, no caso um paralelo oficial. E começar a falar essas besteiras aí de cima.
Mais difícil ainda é resistir à ideia de ter um treinador, uma equipe, bananas, maçãs e alongamentos na barraca antes da corrida. Assim, com essa estruturinha sedutora, cheguei à largada da Maratona de São Paulo ontem. Ainda estou no pré-42K, por isso me inscrevi para os 25K. Motivado pelos tempos sub 5’ da prova de 11K no Pacaembu e no “teste de lactato” (meu Deus!), achei que já estivesse em outro patamar de ritmo.
E estava mesmo. O celular como de costume não funcionou, e eu fiquei sem meu cronômetro, mas tudo indica que eu tenha completado os 25K em 2:12’. A marca dos 21K, da meia, ficou na casa, imagino, do 1:50’. E o pace, entre 5’15” e 5’20” – se eu consegui criar empatia com a audiência neste parágrafo sou um Verissimo.
Apesar do ufanismo paulista da organização, que vê na Maratona de São Paulo a melhor do Brasil, suponho que pelo circuito e pelas condições climáticas – ontem, perfeitas, com a temperatura variando de 15 a 20 graus -, ela tem o mesmo problema de tantas outras, como a do Rio.
Os primeiros 4 ou 5K são um funil de gente, só consegue atingir velocidade de cruzeiro ali quem sai na frente ou é pickpocket. Por isso eu e meu amigo Gesu Bambino, que pela primeira vez disputava uma prova com este Seu discípulo, eis a grande notícia escamoteada neste parágrafo, só fomos desenvolver bem depois do Shopping JK – o relevante sightseeing da cidade segundo as câmeras da Globo.
Fui conversando com o mestre até a Rua Alvarenga, o KM 17, quando Gesu abriu uns bons 200 metros, aproveitando-se da subida da Ponte da USP. Logo depois, na virada do Parque Villa-Lobos, o Lauro, da 5 Ways, a “minha” assessoria, apareceu como um raio e perguntou se eu queria algo. Queria apenas saber em quanto tempo eu cravaria os 21K, mas fiquei feliz por sua solicitude.
Os 2,5K do retão da raia do remo, dentro da USP, até a chegada, um tantinho fora do campus, tiveram um gosto de Canindé, de estar jogando em casa. Quantas vezes palmilhei aquele trecho. Mesmo assim, novamente fui vítima de uma certa ansiedade pela aproximação do fim, como se, caso a chegada estivesse uns 3K adiante, eu ficasse pelo caminho.
Prova concluída, caminhando com o Gesu pelo mesmo retão da raia – ele ia tomar uma chuveirada dentro do Cepê, o clube da USP -, fomos vendo os corredores que tinham outros muito concretos 17K pela frente. Pensamos no nosso conforto – nenhum de nós esgotado, muito pelo contrário -, e da nossa motivação futura. Um frio na barriga ainda nos acomete quando pensamos na maratona, possivelmente pela glamourização do negócio.
É curioso que tenhamos um certo respeito pela maratona e toda a mitologia que a envolve. Isso a torna sem dúvida muito mais atraente, um desafio na acepção da palavra. E, num plano pessoal, como uma experiência de autoconhecimento, permite ver o quão mais conservador estou me tornando, tendo a partir dessa metáfora singela concluído que deixei uma suposta iconoclastia em algum ponto da minha vida. Não admira se eu votar no Eduardo Campos.
Bati uma foto com o Gesu quando andávamos pela raia, mas uma luz leitosa, dir-se-ia algo como um sudário, se interpôs entre o celular e nós, e nossos rostos ficaram indiscerníveis.
Depois disso decidi correr outros 6K para pegar minha moto no Ibirapuera. O corpo não reclamou e, como não havia mais nada em disputa, a cabeça também não.
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