TERMINAR UM IRONMAN “FULL” – 3,8K de natação, 180K de pedal e 42K correndo – é para poucos.
E o que dizer de, logo em seguida à competição, enfrentar um linfoma, com cinco a seis ciclos de tratamento quimioterápico pesado e por fim um autotransplante de medula?
Seriam, a propósito, esses dois desafios equiparáveis?
Para o triatleta, jornalista e executivo de comunicação corporativa David Grinberg, sim, seriam. Mal terminou o único Ironman “full” que disputou em sua vida, em Florianópolis, em maio de 2018, David baixou no hospital Albert Einstein, em São Paulo, para tratar um câncer, câncer que ele jamais desconfiou que tivesse.
É bem verdade que semanas antes do Iron ele já vinha recebendo sinais de seu corpo de que as coisas não iam lá muito bem. De qualquer forma, gato escaldado e avesso a homens e mulheres de branco, temia que os médicos o proibissem liminarmente de participar do Iron, um sonho adrede acalentado.
Na hora H ele não ouviu uma negativa cabal – ou ao menos não revela no livro que ouviu –, e disputou a competição mesmo já sofrendo as consequências do mal.
Quando voltou para São Paulo, um desmaio e uma queda de cabeça no banheiro de casa acendeu todas as luzes vermelhas reais e imaginárias.
Se vencer uma maratona já costuma valer livros, por que não contar a saga de superação desses dois eventos tão complicados, o Iron e o linfoma – ainda por cima quase simultâneos – também nesse formato? Ainda que, por conta da pandemia, apenas em versão digital?
Rotina de Ferro (Ed. Planeta, R$ 17,91) dá conta disso. O recurso estilístico que estrutura a narrativa, um paralelismo entre as dificuldades para terminar o Ironman – que começa bem antes do domingo da competição, nos treinamentos puxadíssimos a que ele teve de se submeter – e os meses de tratamento do linfoma, descritos minuciosamente pelo autor, podem, curiosamente, ser creditados ao dr. Nelson Hamerschlak, o hematologista que cuidou de David.
Foi ele que sugeriu a David que encarasse as dificuldades do tratamento de maneira análoga, em método e altivez, ao que havia enfrentado no Iron.
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Em junho de 2019, como se o que já tivesse vivido em 2018 não fosse o bastante, David voltou ao cascalho. Desta vez para concluir um 70.3, o “meio” Iron, em Cambridge, na costa atlântica dos Estados Unidos.
Participar daquela prova significava cumprir uma “promessa” feita em conjunto com seu ex-chefe, Dan Schleiniger, ainda durante os meses de tratamento quimioterápico em São Paulo.
Dan, que criou a hashtag #ThisIsaMission para fortalecer o engajamento do duo na tal missão, também teve de se superar. Ele não tinha nenhuma intimidade com o triatlo, melhor dizendo, com o esporte.
“Aos 44 anos, pesava mais de 100 quilos, nutria péssimos hábitos alimentares (…) quase nunca me exercitava. Pensando bem, a doença de David pode ter salvado minha vida”, escreve ele no posfácio de Rotina de Ferro.
A próxima competição de David, um novo 70.3, está, bien sure, por vir. Mas uma mudança em 2019 para a Argentina e a pandemia da Covid-19, vivida com doses bastante exigentes de distanciamento social naquele país, jogaram a meta para a frente. Atualmente, David só corre 5K nas ruas e pedala num “rolo” dentro de casa. A natação, justamente seu esporte preferido, virou um funcional, que ele tem orgulhosamente matado.
O IRONMAN E O BRASIL REAL
ELE NÃO VAI DEIXAR EU USAR A PALAVRA SUPERAÇÃO
MINHA PRIMEIRA MARATONA, VIVACE
De Vicente Lopez, cidade limítrofe a Buenos Aires, onde hoje vive, David falou com o JQC por telefone. Leia a seguir os principais destaques.
IRON e LINFOMA
O dr. Nelson habilmente colocou na minha cabeça esse paralelo de como eu poderia enfrentar o tratamento do linfoma. Ele é um médico que conhece há tempos meu pai, que também é médico, sabia também da minha dedicação ao esporte desde criança. Funcionou. E eu aproveitei os tempos livres que tinha no hospital, durante o tratamento, para começar a relatar, a registrar tudo pelo que passava.
IRON versus LINFOMA
Ninguém me forçou a fazer o Ironman, eu escolhi fazê-lo. E foi muito difícil, sofri demais. O treinamento já foi extenuante, acordar às 4 da manhã, teve aquele dia de pedalar 150K pra depois correr 32K. E durante a prova eu estava extenuado, participei dela mal [já sentindo os efeitos do linfoma, ainda não diagnosticado]. Lembro que pegou muito no 10, 11K da corrida, ali faltava muito, a sorte é que tinha outro cara da [assessoria esportiva] Run & Fun, ele também tava malzão, aí fomos juntos até o final, fomos levando. Mas tiver de parar, colocar “Gelol” no joelho, tive de baixar a bola, foi foda.
Difícil dizer como seria o tratamento sem o esporte. Desde criança sou mito disciplinado, obediente, CDF mesmo. Talvez o esporte tenha ajudado a me modular desse jeito, ou, não sei, já era uma característica minha. Eu teria superado o câncer de qualquer forma, tinha um contexto, carinho familiar, um bom médico, um bom hospital aplicando os protocolos corretos, tudo jogando a favor. Foram cinco meses em que eu estive rodeado de amigos e familiares, que me mostraram o quanto eu era querido. Mas um aspecto é importante destacar: sem o esporte não estaria condicionado fisicamente como estava, e isso ajudou muito na minha recuperação.
O PIOR DOS CENÁRIOS
A morte pode não estar presente tão agudamente no livro, mas eu pensei muito nela. Houve situações, quando caiu meu cabelo por conta da quimioterapia, por exemplo, ali caiu a ficha… Houve horas em que eu estava comigo mesmo, no banho, e eu desabava. Novamente há um paralelo no esporte, como eu conto no livro, quando a gente está numa competição e um diabinho vem à mente, fazendo com que a gente pense no pior, a dor, a desistência. Aconteceu muito [de pensar na morte].
Concordo com as pessoas que dizem que o esporte dá disciplina e resiliência. Tem também a obediência, o cumprimento de metas. Há muitos paralelos com a atividade profissional, que tem meta, tem trabalho em equipe, disciplina, resiliência, tem a necessidade de engolir sapos. Também a definição de táticas, a necessidade de saber celebrar e reconhecer. Tudo isso que há no esporte também me ajuda muito como executivo.
SOCO NO ESTÔMAGO
Quando eu terminei de escrever o livro, achei-o chato, basicamente as histórias se repetiam em ciclos. Então pedi a uma editora que o lesse, e ela me aconselhou a começar com um ‘soco no estômago’. [O soco que abre o livro é o momento em que David recebe a notícia que tem linfoma, contada sem cuidado por um hematologista, e com isso acaba desmaiando e sofrendo uma parada cardíaca de 11 segundos]. De resto, ele foi 100% escrito por mim.