A JORNALISTA ERIKA SALLUM descobriu a bicicleta em algum momento dos anos 2000. Talvez tenha sido bem antes, pois a coisa ficou tão séria que mulher e objeto parecem uma coisa só, indissociáveis.
Desde os tempos pré-internet da Ilustrada, Erika exsuda disposição. Ela é o que os jornalistas d’antanho chamavam de “pé-de-boi”. Pau-pra-toda-obra.
Editora hoje das versões brasileiras das revistas Outside e Bicycling, parece ter encontrado nas quilometragens exigentes da bike a melhor maneira de dar vazão a uma força que deve ser difícil de controlar.
Creio que o texto a seguir dá conta dessa força. Erika publicou-o no site Pretty. Damned. Fast. (preservei a pontuação afetada) e gentilmente permitiu sua republicação neste pasquim.
Tradução de Tabajara Vieira.
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“QUANTO TEMPO VOU TER DE FICAR longe da minha bicicleta?” Juro que essa foi a primeira pergunta que passou pela minha cabeça quando ouvi as mais terríveis palavras que eu jamais ouvira – “Sim, é câncer.”
“Você acha que eu vou conseguir pedalar durante o tratamento?”, perguntei a meu médico. “Sem dúvida. É essencial que você o faça”, respondeu, sorrindo com todo seu coração.
Seria difícil eu estar em melhor forma. Nunca fumei e sempre bebi pouco, socialmente. Vinha pedalado demais nos últimos 13 anos. E o caroço que encontrei no meu seio esquerdo ao tomar banho não parecia um tumor, segundo ele.
Além disso, era jovem, estava com 39 anos. Mas era câncer. Tipo raro, chamado mucinous carcinoma, bem mais comum em mulheres de 65 anos ou mais.
Isso foi em janeiro de 2016. Tudo correu muito rápido, como as rodas da minha bike na véspera da cirurgia, em fevereiro. A quimioterapia começou em março. Meu namorado neozelandês, um panaca completo, deixou minha casa em abril (“Li na internet que sua químio pode ser perigosa para MINHA saúde”, ele disse).
Eu havia sido convidada, como editora das revistas Outside e Bicycling Brazil, para participar do Tour de France em julho – e fui pra lá supercareca e magra. Também em julho fiz o Rapha’s Women 100 (uma pedalada de 100K num dia só; sim, durante a químio).
Em agosto, meu corpo todo inchou com a cortisona, adicionando quilos à minha silhueta. Quilos que simplesmente não iam embora.
A última sessão de químio foi em setembro. Minha nova vida começou em outubro. Para celebrar, viajei ao Irã com meu irmão.
Não deixei o pedal durante esses meses. Isso ajudou a manter minha sanidade, mesmo quando minha fraqueza beirava o ridículo e eu mal podia com a bicicleta.
“Você é a ciclista mais forte, a garota mais bacana que conheço”, disse minha amiga Talita quando eu penava para subir um morro que sempre foi peanuts.
Meus olhos se encheram d’água, mas segui pedalando.
Era mais que uma obsessão. Era o pedal que me mantinha viva.
Poucos dias antes da minha cirurgia, o campeão mundial Peter Sagan veio ao Brasil. Pedalamos juntos por poucos minutos, algo que me fez esquecer por instantes o pesadelo que encontrei em mim mesma. Meu amigo e fotógrafo Diego Cagnato perguntou se estava tudo bem.
– Tenho câncer, eu respondi.
Naquela mesma semana nos vimos numa festa e ele perguntou se poderia documentar meu tratamento. E lá estava ele com sua câmera quando cheguei ao hospital por volta das 5 da manhã. Quando eu quase vomitei durante a químio. No meu corte de cabelo. Quando chorei, pois câncer é diferente da dor de um coração partido…
Um ano depois, olho para essa fotos e sinto gratidão por ter amigos maravilhosos que me estenderam a mão e que ainda por cima compartilham a mesma paixão pelo pedal.
Minha bike sempre esteve do meu lado, nunca me desapontou. Nunca. Pode soar como um clichê, mas é verdade: ela me ensinou que sou mais forte que imaginava.
Pedalar nunca foi tão maravilhoso.
Vida segue. Como o pedal. Subidas cabulosas vêm e vão, assim como as descidas divertidas. Estou curada agora. Mais esperta. Ainda me recupero do tratamento. Ainda estou por voltar à antiga forma.
Vou continuar na pista. Aconteça o que acontecer.