TENHO A FELICIDADE de ter a dois, três quilômetros da minha casa dois locais de corrida bastantes bons para o serviço endorfínico. O Villa-Lobos, com sua trilha de 4K de cascalho aproveitado por pouquíssimos; e o famoso campus Armando Salles de Oliveira, a USP elle-même.
Não dá para reclamar: a eventual junção dois dois locais numa mesma jornada satisfaz até nego se preparando para ultramaratona.
Na periferia é um pouco diferente. No emblemático Capão Redondo, por exemplo, o principal parque da região não chega a ter a quinta parte da área do Villa-Lobos.
Mas a história do parque Santo Dias, cujo nome tributa um morador local, o operário morto pela polícia paulista em 1979, aos 37 anos, durante paralisação dos metalúrgicos paulistanos, torna muitos de seus usuários orgulhosos de correr e treinar ali.
O policial que disparou o tiro teve a condenação revogada um ano após a sentença, só para constar. O Ultraman Rodolfo Lucena fala com propriedade dessa história no link abaixo.
SANTO DIAS NA CORRIDA POR MANUEL, DO ULTRAMAN RODOLFO LUCENA
RODOLFO LUCENA E SUAS CORRIDAS PELA INCLUSÃO E PELA DEMOCRACIA
A RAINHA DA CORRERIA E DA CIDADANIA DO CAPÃO
O Santo Dias surgiu por pressão popular, com a desapropriação de grandes áreas pertencentes à Igreja Adventista do Sétimo Dia (que mantém a marca de alimentos Superbom) para a construção de uma COHAB.
Seus moradores tiveram a sensibilidade de ver naquela área remanescente de Mata Atlântica um lugar a ser preservado, a despeito da brutal demanda por moradia na periferia paulistana.
É no Santo Dias que Neide Santos e colaboradores tocam o Vida Corrida, projeto social que há quase duas décadas leva cidadania, corrida de rua e condicionamento físico para 500 pessoas, entre adultos e crianças, por ano.
No Santo Dias o povo tem de se mexer muito, e não apenas para correr, mas para cuidar do parque. Foi se mexendo, fazendo pressão, que veio a cobertura da quadra de basquete; a oficina de tênis; o aconselhamento médico permanente, além de outras melhorias.
Às vezes, quando problemas licitatórios, orçamentários ou mesmo de incompetência de gestão criam dificuldades absurdas como a falta de pagamento dos funcionários terceirizados de limpeza e segurança, são os usuários que assumem o lugar dos faltantes.
Num local em que os índices de violência são altos, a presença de consumidores de crack num determinado ponto do parque é até tolerada, mesmo porque, segundo os usuários do Santo Dias, a polícia não consegue debelar o pequeno fluxo.
Com tudo isso, constatar a quantidade de pessoas correndo pelas trilhas e o cuidado dos administradores com o patrimônio ambiental, como eu voltei a fazer esta semana, é revigorante.
Conversar com o administrador do parque, o engenheiro ambiental Clodoaldo Cajado, é um lenitivo para os dias gris e difíceis. Ele recebe qualquer um com simpatia e mostra o trabalho executado na preservação das espécies endêmicas, como a palmeirinha-prateada, ameaçada de extinção em São Paulo.
Foi difícil fazê-la medrar no Santo Dias, pois basta um besouro para impedir sua floração. Na Mata Atlântica paulista restam pouquíssimos exemplares. A maior parte foi dizimada pelo trecho sul do Rodoanel.
Eis uma boa história coletiva de superação, para quem gosta desse tipo de antologia.