Bolaño, motos, fuscas e um caminho abrindo porteiras em Cunha

Paulo Vieira

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Estou em Cunha, a simpática cidade de 25 mil habitantes, 50 mil fuscas e um bocado de CG 125, se é que a moto popular da Honda ainda se chama CG. Eu também tive a minha, que consumi até a última ponta antes de entrar no maravilhoso mundo das XL-250, esta sim uma outra dimensão de pilotagem.

Eu ainda reputo como uma das maiores sensações da minha vida, não estou exagerando, guiar pela primeira vez a XL do João, em Tietê, ali perto de Piracicaba, parecia que flutuava do alto daquela suspensão sem igual, Pro-Link, que fazia com que eu tratorasse obstáculos, buracos, espelhos. Minha gratidão eterna ao João.

Sem mais digressões motociclísticas.

Vim aqui pra Cunha quando tudo parecia perdido. Sem carro e com minha moto (tipo XL, agora chama NX) sem documento e vazando óleo, sobrou-me o Pássaro Marrom, feo pero cumpridor, que me deixou em Guará nas 2h30 prometidas e me fez vagar por sua pequena rodoviária por mais de uma hora enquanto esperava o refugão que me levaria a esta cidade teto de Paraty em que me encontro.

E aqui dei um jeito de chegar a uma estrada de terra distante de tudo – que leva ao bairro Paraibuna e ao Parque Estadual da Serra do Mar -, e nela a um inverossímil restaurante aberto todos os dias faça sol ou névoa espessa, o Sabores da Roça, tocado por um casal sênior simpaticíssimo com a informação de que, retornando uns 2, talvez 3, quem sabe 4 quilômetros na estrada de Paraibuna, haveria uma porteira e, a partir de lá, um caminho de terra que me levaria de volta à cidade numa corrida que prometia durar umas 2 horas.

Do momento que saí de Cunha na carona de um Fiat 147 até a estradinha, o sol a pino e os 32 graus da cidade baixaram para o fog de Paranapiacaba e uns 18 graus. Perfeito.

A corrida começou no restaurante e, como em toda estrada de terra da Mantiqueira, o cenário, quando não há mirantes para ver mares de morros, é monótono. Pinheiros, mais alguns pinheiros, um pouco mais de pinheiros.

Vencia pontes de madeira e o percurso, plano, não exigia muito. A cabeça começou a trabalhar à medida que a tal porteira insistia em não aparecer. Nesse momento, mesmo tendo tentado registrar visualmente a referência na ida, não sabia se ela estava perto daquele campinho de futebol, mais à frente da igreja encarapitada no morro ou passando a vaca malhada.

Refleti, a um pace suponho de uns 10K/h, que devia ter fotografado a porteira com meu celular, mas o pensamento me pareceu comodista demais. Por fim, sabendo que havia visto uma seta, surgiu a porteira, que abri a passos largos. O aviso “Mantenha a porteira fechada” me deu certeza que abria a porta certa.

Mentiria se dissesse que entrei para nova dimensão, como na moto do João. O caminho era bonito, com trechos de declive em areia, aclives pouco assustadores às vezes até calçados e poucas aberturas visuais para a imensidão de corcovas que são essas montanhas de Cunha, como quando a gente as vê da estrada que desce para Paraty.

Precisei abrir mais uma ou talvez duas porteiras, mas, como o pessoal que me deu carona já havia avisado, em nenhum momento apareceu uma encruzilhada para me fazer dizer a mim mesmo E agora, mané?

O idílio rural durou apenas cerca de 40 minutos, pois logo chegava ao asfalto sinuoso da SP-171, a tal estrada que leva a Paraty, no seu, digamos, pior momento: uma subida inclemente de 2,5K, a que chamam aqui de Pedra Grande. Não obstante (gostaram:?) foi menos desgastante subi-la do que fazer aquela volta suicida do Auditório de Campos do Jordão, registrada e lavrada neste respeitabilíssimo site em post adrede publicado.

Perdão se me excedo, estou lendo Roberto Bolaño, Os Detetives Selvagens, Companhia das Letras, que, francamente, não tem nada a ver com isso e recomendo muitíssimo.

Deu 1h50 no total, e, assim que cheguei à casa onde me hospedo, no bairro Falcão, começou a chover, num timing que não poderia ser mais perfeito. Poderia, na verdade, poderia ter começado uns 5 minutos antes.

Amanhã vou tentar ver Angra dos Reis e o Atlântico aqui dos 1800 metros da Pedra da Macela e devo deixar para o domingão minha última traquinagem esportiva cunhense. Até lá já devo ter vencido as 170 páginas que faltam do Bolaño e, quiçá, estarei menos literário. Se eu correr pela manhã é bastante provável que eu não beba as duas cachaças de alambique que acompanharam meu comercial com ovo que precedeu a corrida de hoje.

Não sei se fizeram bem, mas mal não fizeram.

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

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