Ulysses Guimarães não tirou a selfie

Paulo Vieira

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Deus dá o frio conforme o cobertor, diz o ditado, o Mato Grosso e o Joca. É por isso que, na mesma época em que todo mundo tem celular com câmera e o leva para qualquer lugar, o vice-presidente da República e o presidente da Câmara Federal são as últimas pessoas a quem você abraçaria e pediria para posar para uma foto.

Mas no tempo em que foto só saía de um negócio chamado câmera – e ainda era necessário que um negócio chamado filme fosse revelado em outro chamado laboratório (após vermos um troço de nome contato) –, o segundo homem da República, o presidente da Câmara e os dirigentes do PMDB ainda eram dignos de protagonizar o que 25 anos depois chamaríamos em bom português de selfie.

E eu estava naquele fim de mundo, naquele lindo fim de mundo, preparado para fazer uma selfie com o sujeito que atendia aos três requisitos acima.

Dr. Ulysses Guimarães podia não ser Gandhi, mas Michel Temer ou Eduardo Cunha também não era. Contava a seu favor, claro, ter encarnado o Sr. Diretas e o Mr. Constituinte, ainda que o desgaste da Nova República houvesse espatifado sua auréola em pedacinhos.

"É hexa!"
“É hexa!”

O Venerável Ancião andava por aquela praia todo encoberto. Mantas, boinas, panos xadrezes. Dona Mora, menos entrevada, sempre o acompanhava. Aquele, afinal, não era seu ambiente. O homem, que ia derretendo também nas urnas paulistas, só avultava em Brasília, no púlpito, no parlatório, na tribuna. Se se expusesse sem proteção ao sol do Paralelo 17, talvez virasse um grande melanoma.

No verão de 1990, achei que poderia encontrar nosso Matusalém naquele cu do Judas. Pense num lugar aonde ninguém vai hoje. Agora pense em 1990.

E lá vinha ele.

Uma câmera já estava nas mãos da Cris para a eventualidade desse encontro impossível se dar. Resoluto, abordei a Raposa na areia.

Toda a cena deve ter durado menos de um minuto. Foi o tempo que o Velho Matreiro precisou para me despachar, após ouvir seu nome ser pronunciado por este perfeito estranho. Meus protestos de estima foram liquidificados por sua habilidade em se desvencilhar dos fãs, que numa praia e num tempo como aqueles deviam parecer-lhe ETs.

Não lembro o que dissemos um ao outro, diálogo indigno, contudo, de ganhar a posteridade.

Também não tive tempo ou maleabilidade de superego suficiente para pedir que a Cris apertasse aquele maldito disparador.

Um jubileu de anos depois estou de volta à locação desse fato momentoso, Ponta do Corumbau, no litoral sul da Bahia, lugar que permanece alheio às movimentações palacianas, onde os índios pataxós já não vibram mais na minha calça Lee – alguns vestem Diesel –, e onde tento debalde convencer o canoeiro que me atravessa pelo rio Corumbau de que tudo era verdade: Velho andou mesmo por ali.

Já não está mais aqui seu anfitrião, o ex-ministro maranhense da Nova República Renato Archer, nem sua enorme fazenda de coco, que hoje dá lugar a um resort. Resta uma foto histórica, preto e branca, com dr. Ulysses voltando daquele mar, publicada na Folha de S.Paulo, se não me engano.

E resta a memória deste meu encontro dissolvendo-se no mar do tempo.

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

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