Doutor Paulo Saldiva contra o vírus

Paulo Vieira

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COMO É DE DESCONHECIMENTO QUASE GERAL, colaboro mensalmente com o programa radiofônico Fôlego, da Bandeirantes AM. Seu apresentador, Ricardo Capriotti, é um adepto do cascalho e, como eu, mais um fetichista da maratona – tem três no currículo.

Ali costumo falar de algum destino de corrida – no Brasil ou alhures. Já mobilizei minha voz roufenha para descrever Buenos Aires, Lisboa, Salvador, Montevidéu, Ubatuba, Atenas, Hawke‘s Bay (Nova Zelândia), Tóquio, Londres, Paris, Kilimanjaro, Cidade do México, Piranhas, Jericoacoara, Brasília e muitos outras lugares.

Ontem, inspirado pelo escritor francês do século 18 Xavier de Maistre e sua Viagem em volta do meu quarto, o destino enfocado foi a minha própria casa.

Ao final do boletim propus ao ouvinte que fizesse uma corrida à Abramovic, aquele tipo de desafio criado, quero crer, por este pasquim, que consiste em registrar na memória todos – ou quase todos – eventos que acontecem durante os 30, 45, 60, 90 minutos de um cascalho rotineiro.

Um desafio adicional nestes tempos de autoisolamento para também ajudar a fixar o corredor no espaço exíguo de sua própria casa ou apartamento.

Do pedrisco deslocado pelo pé direito (ou esquerdo) ao cadarço que quase desamarra passando pela filha que aparece na janela para espairecer um pouco, a ideia é conservar todos esses eventos banais na memória, sem exceção.

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Mas o que quero falar aqui é que quem esteve também no Fôlego foi o patologista Paulo Saldiva, 65 anos, o famoso “Pepino”, médico conhecido, entre tantos feitos, por seus incansáveis alertas sobre os perigos da poluição ambiental.

PAULO SALDIVA NO JQC: “A CIDADE ESTÁ OBESA”

O automóvel, como se sabe, é o principal agente poluidor das grandes metrópoles, e Pepino, coerentemente, prescinde dele para trabalhar. Seu modal é a bicicleta.

Muito diferentemente de mim, que sou jack of all trades, um “mestre de nada”, Saldiva vai bem em muitas áreas. Até como apresentador e criador de programa de TV, o Urbanite, em que interpreta todos os personagens – dois Saldivas diferentes, basicamente – e ainda toca gaita, o cara manda muito.

Saldiva vem atuando há três semanas em “plantão permanente” em autópsias no Hospital das Clínicas de pessoas vitimadas pela Covid-19. “Não é nada heroico como o trabalho do pessoal nas UTIs e nos pronto-socorros”, disse a Capriotti. “Tenho colegas e alunos que foram entubados.”

Veja os principais pontos da entrevista:

A IMPORTÂNCIA DAS AUTÓPSIAS

[ESTUDO] “OS MECANISMOS QUE LEVARAM O PACIENTE a desenvolver a insuficiência respiratória. Isso ajuda a programar antibióticos, já que ele também desenvolve uma infecção bacteriana secundária. Há uma alteração também dos vasos sanguíneos, o que é relativamente novo, e [as autópsias] podem ajudar a dar uma perspectiva de desobstrução desses vasos.

A autópsia é minimamente invasiva, são feitas pequenas punções para a tomada de imagens. Se a doação de órgãos do paciente não é possível, ele faz uma doação de conhecimento. O conhecimento sobre essa interação do tecido [celular] com o vírus vai ajudar a ser mais preciso nos alvos  terapêuticos.

MUTAÇÕES DO VÍRUS NO BRASIL

[NÃO HOUVE] A GENTE JÁ ATÉ O SEQUENCIOU NA USP, ele está bastante conservado. A bactéria faz isso, se tem uma vantagem competitiva, a seleção mais vantajosa vai dominando o espaço. O coronavírus é suficiente desde o início, não tem motivo para mudar. Funciona bem nas cidades grandes, uma pessoa que não se sabe doente pode contaminar inadvertidamente. Ele pode ficar cinco dias ou até mais no seu corpo sem que haja sintomas evidentes como febre.

A POLUIÇÃO COMO AGRAVANTE

QUANTO MAIS POLUÍDA A CIDADE, mais inflamado é o pulmão. Mas como as cidades mais poluídas são também as mais densamente povoadas, então não dá para fazer essa correlação. Não consigo dizer quanto a poluição afeta, mas tenho certeza que o nosso pulmão fica um pouco mais fraco por vivermos com o nível de poluição que temos.

FICANDO EM CASA

EU VOU PARA O HOSPITAL DAS CLÍNICAS bem cedinho de bike e volto à noite, umas 10, com a cidade deserta. Portanto, a chance de encontrar alguém infectante é pequena, diferentemente do que seria no metrô ou no ônibus. Porém, se todo mundo for pra rua, aquela ciclovia, aquela faixa de corrida vão ficar cheias de gente, ventilando mais, expelindo aerossóis que podem ficar no ar em torno de uma hora. E as gotículas menores expelidas podem ficar, a depender do vento e da temperatura, por até 4 horas. Se todo mundo sair para a rua, cria uma situação de contágio. Então se individualmente fazer esporte na rua é benéfico, no plano coletivo é melhor refrear e fazer o exercício em casa.

ETIQUETA EM TEMPOS DA COVID

SUGERI PARA MINHA MULHER que fosse ao supermercado de máscara, e isso já bem antes [do pico da contaminação]. Você se protege e protege os demais, caso seja assintomático. Todo mundo deveria usar. Mas ela foi chamada de louca, como se estivesse colocando pessoas em risco. A máscara não dá proteção total, nem todas as máscaras são ideias, mas dá para fazer com pano. Troque-a a cada duas ou três horas se você for usá-la por mais tempo.

E depois de tirar, lave o rosto. O vírus não entra pela pele, precisa da mucosa ocular, do nariz ou da boca para entrar.

UMA PALAVRA DE ALENTO

DEPOIS DE UMA GRANDE CRISE sempre tem um grande desenvolvimento, não só na área médica, no desenvolvimento das vacinas. Pessoas que mal se falavam agora se oferecem para ir ao supermercado. Vamos sair um pouco melhor do que entramos.”

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

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