ADMINISTRAÇÃO DE TEMPO NO JORNALISMO costuma funcionar assim: você procrastina ao máximo, deixa aqueles três ou quatro dias de prazo correrem flácidos abrindo um site aqui, outro acolá, até a hora em que o “deadline” impõe ao caboclo passar horas seguidas em cima do computador e virar a última madrugada correndo atrás do prejuízo.
É uma visão assumidamente arquetípica da profissão, mas que abrange uma quantidade imensa de coleguinhas, editor deste pasquim incluído.
Mas não abrange o Cesinha Candido, figura impoluta e incorruptível, jornalista de hábitos austeros e hígidos, homem reto no cascalho e fora dele.
CESINHA CANDIDO, O HOMEM-PLANILHA
PARE DE USAR PLANILHA
PARE DE DISPUTAR PROVAS DE CORRIDA
Vejam só: mal completou a mara de Porto Alegre, anteontem, já abasteceu um de seus perfis no instagram – este, exclusivo de conversas sobre o cascalho – com o relato de como se houve na famosa prova.
A higidez, a austeridade e a retidão de caráter o constrangem a dar tintas minimamente épicas à sua pena, portanto qualquer hipérbole, gongorismo ou passagem delirante deve ser imputada a este editor, que surrupiou na mão grande o texto do parça para republicá-lo aqui.
Caso algum o leitor o conheça, fineza não avisá-lo do sinistro.
Evoé.
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ATÉ DUAS SEMANAS ANTES DA MARA de Porto Alegre, a pressão para fazer a prova era zero e eu estava tranquilo até demais para quem ia encarar 42K.
Devido ao ritmo dos longões e o fato de ter perdido o treino de 32K por conta de uma gastroenterite, não tinha a menor expectativa de melhorar meu tempo na distância (3:51) e imaginava só passear [grifo do autor] na corrida.
A coisa mudou quando recebi a estratégia de prova da equipe de fisiologia da Run & Fun, assessoria em que treino. Lá dizia que eu tinha condições de terminar a maratona em 3:46.
Pronto, a ansiedade e a pressão foram de zero a mil.
Para piorar o nervosismo, no grupo de atletas da Run & Fun que iam para terras gaúchas só se falava da previsão do tempo no dia da corrida, que era de chuva, muita chuva.
A ideia de fazer os 42K molhado como um pinto assustava muita gente, inclusive eu. Roupa pesada, tênis encharcado, bolhas, vento cortante, frio, medo de ter hipotermia…
Óbvio que não parecia ser nada legal correr assim.
Alguém no grupo disse para ficarmos tranquilos: “O tempo vai ficar bom, enterrei um ovo para Santa Clara”.
Não funcionou.
O domingo em Porto Alegre amanheceu como o previsto: bem molhado. Os 10 mil atletas se alinharam para a largada da prova debaixo de chuva.
A boa notícia é que a temperatura estava agradável para correr, não fazia frio – apesar de algumas pessoas estarem de calça, blusa, luvas, gorro, saco plástico.
A primeira parte da prova foi bem cheia, pois seguiam juntos corredores da mara, meia e 7,5K. Impossível manter o ritmo planejado.
Quando a coisa começou a andar, digo, correr, surgiram algumas subidas que muita gente não sabia que ia encarar.
“Mentiram pra gente quando disseram que a corrida era toda plana”, esbravejou uma corredora para a amiga. Mas as ladeiras eram curtas, fáceis de superar.
Aproveitei a descida para encaixar o ritmo e fui embora. A chuva fraca ia e voltava e o vento a toda hora vinha para atrapalhar.
Houve um momento, quando a turma dos 21K já tinha se separado, e a pista estava mais livre, que em questão de segundos fui atacado por rajadas de vento de todos os cantos: contra, a favor, lateral. Ignorava o fenômeno.
Passei a meia 2 minutos abaixo do planejado e com tudo sob controle. Nessa altura do campeonato, minha camiseta já tinha esticado até os joelhos por causa do peso da água e começou a atrapalhar.
O chip da prova, preso por um elástico no pulso, também incomodava e fazia a mão adormecer. Negociei comigo mesmo que me esforçaria para manter o ritmo até o 30K, onde o Lucas, treinador da Run & Fun, me esperava com batata, salgadinho e refrigerante.
Depois, veria o que ia dar. E assim fui…
“Quer salgadinho? Cola? Batata? Um abraço?”, brincou Lucas quando me aproximei. Respondi que queria tudo, mas o que só queria mesmo era terminar a corrida, pois ela estava começando a ficar sofrida.
Consegui segurar o ritmo até os 35K, quando ele caiu uns 15 segundos.
Passei por um trecho alagado e afundei meu pé direito em água bem mais gelada do que a de outras poças que tinha encontrado até então. Os dedos dormiram e parecia que o tênis tinha rasgado, mas estava tudo normal com ele.
Esse sensação estranha durou uns 2K, quando foi trocada pela dor de bolhas na sola do pé esquerdo e outra no dedinho.
Alguém que não estava fazendo a prova gritou: “Parabéns, falta pouco, só mais 5K, você é um maratonista”.
Nunca ouvi uma frase tão idiota na vida. Para quem está cansado, acabado, destruído, com dor no corpo todo, 5K não são pouca coisa. Eram mais 25 minutos correndo. Uma eternidade!
A essa altura, a cabeça já fazia as contas do que era preciso para garantir o recorde na maratona, o corpo mandava parar, a cabeça pedia para aguentar mais um pouco, o corpo fazia força, mesmo estando no limite.
Essa negociação foi constante até entrar no último quilômetro, quando surgiu um corredor de pessoas no meio da pista. Gente gritando, incentivando, vibrando, aplaudindo, empurrando.
Os 42K foram vencidos em 3:48 e a mara de Porto Alegre vai ficar marcada não só pelo meu novo recorde na distância, mas também pela energia da chegada, da chuva, do vento e até da Santa Clara, que ignorou os ovos enterrados para fazer com que todos os corredores tivessem um dia inesquecível.