MEU HEROI, NOSSO HEROI GUILHERME CAVALLARI, o expedicionário que trocou a megalópole pela roça na Mantiqueira, pedalou solitariamente sob o clima inclemente da Patagônia – e sobreviveu aos pumas para contar a história em filme e livro –, está com título novo na praça.
Em Highlands – Por baixo do saiote escocês (54 pratas o livro físico, old fashioned, da sua própria editora, a Kalapalo), o parça conta como é caminhar pelo “paraíso das trilhas europeias”, como diz, as Highlands escocesas.
(Paraíso numa acepção bastante particular, imagino, e isso quando o verão cai num sábado.)
Boa parte da trilha, importante dizer, não é demarcada, e exige bastante conhecimento de navegação do caminhante.
O aventureiro debutou como autor nos anos 1990 produzindo guias de trilhas para cicilstas pelo estado de São Paulo – rotas que ele próprio criou ou estabeleceu –, mas quem imagina uma carta de navegação em Highlands erra fragorosamente o alvo.
Sua escrita de viagem, como já havia mostrado em Transpatagônia – Pumas não comem ciclistas, filia-se a uma tradição literário-filosófica em que a exploração da natureza é ferramenta de autoconhecimento. Exploração no seu caso necessariamente autossuficiente, sem guias, sherpas ou outras facilidades burguesas.
(E também sem selfies ou “feeding” para redes sociais, que ele usa com desconforto, para fins comerciais, com exagerada pudicícia.)
Sem dividir Saiote em partes estanques, Cavallari consegue equilibrar no livro uma descrição minuciosa da trilha (a parte que este JQC chamaria de “manual de navegação” da obra), que se revela árdua e virtualmente letal, caso explorada no inverno, com o relato das vicissitudes pela qual passa uma pessoa que enfrenta seus demônios – que é, pode-se dizer, a causa última da literatura, seja ela de ficção ou não-ficção.
De quebra, a tigrada ainda ganha uma aula de história da Escócia e da Grã-Bretanha ministrada da melhor maneira possível, a peripatética.
Perdeu, Lonely Planet.
O editor deste pasquim entrevistou o aventureiro.
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Jornalistas que Correm – No livro há uma passagem em que você revela ter dificuldade de dizer a um recém-conhecido que sua profissão é “aventureiro”, que seu trabalho é o que as pessoas normalmente fazem nas férias. Isso limita teus passos?
Guilherme Cavallari – É uma espécie de dilema. De um lado, amo o que faço e não consigo imaginar outra vida. Do outro, é solitário pra caramba! Não tenho com quem trocar figurinhas, não tenho férias porque meu trabalho de aventureiro e escritor parecem férias constantes. Difícil rolar empatia e sinergia com outros trabalhadores. Isso é desconfortável.
JQC – Outro dilema pessoal expresso no livro tem a ver com você querer se jogar rapidamente numa nova empreitada, como fuga. Sinto algo parecido, como se o desfrute dos dias sem labor fosse insuportável. Faz sentido isso ou você precisa ir para a natureza, tem a exploração outdoor muito mais como uma verdade interior? Aliás: existe verdade interior?
Cavallari – Acho que são as duas coisas e algo mais. Tenho ciência, talvez demais, da transitoriedade da vida. Cobro de mim mesmo produção e intensidade por ver o tempo passar e o fim se aproximar. Quando embarco numa nova aventura com o compromisso de escrever um livro e produzir um filme depois, vivo a vida numa intensidade que me parece boa. Estou fugindo da morte, estou me entregando de corpo e alma a um projeto, estou trabalhando para deixar um legado ou algo do gênero. Mas também sei da ilusão que é tudo isso. Não somos o resumo do nosso trabalho. Somos muito mais que isso.
JQC – Você deixa muito claro que é melhor errar por si próprio do que acertar no caminho dos outros. E critica quem explora o Himalaia usando sherpas. Será que isso não ajuda a inibir a exploração da natureza por pessoas que não saem de casa por comodismo ou medo? Não valeria a pena estimular um montanhismo “assistido” para que esse recém-convertido chegue depois ao montanhismo autossuficiente?
Cavallari – Não acredito que exista vida de verdade, com qualidade, nos grandes centros urbanos. No sentido biológico, para que haja vida é preciso que haja água, oxigênio e luz. Nos grandes centros, a água é contaminada, o ar é poluído e a luz é filtrada por poluentes e grandes edificações. Quando nos deslocamos para as montanhas e exigimos essa “assistência”, impactamos o ambiente natural com nossas exigências urbanas de conforto, segurança, praticidade, comunicação, acessibilidade e afins. E nós somos, essencialmente, seres naturais porque viemos do ambiente selvagem, natural. Retomar contato com esse ambiente é reconectar com nossa essência. Essa é minha trajetória e o cenário de fundo de meus livros. Buscar experiências naturais não “assistidas” é a saída que enxergo para o impasse social e ambiental que vivemos.
JQC – Uma das questões que mais me interessam na corrida é a possibilidade de ter acesso aos próprios pensamentos. Mas corro horas e são poucos os pensamentos que consigo destilar para uso futuro. Pode dar umas dicas de como fazer para pensar durante a atividade física?
Cavallari – Acho que isso é muito individual. Acho também que quanto mais exigente fisicamente a atividade, menor será a disponibilidade energética para a mente. Caminhar em contato com a natureza já gerou excelentes livros com pensamentos originais (John Muir e Henry Thoreau são exemplos clássicos). Não conheço livros de corredores pensadores. A pressa talvez elimine ou minimize muito essa possibilidade. Então, para dar uma dica, diria: não tenha pressa.
JQC – Ainda nessa linha: como lembrar de tudo o que observou? É imperativo escrever diariamente ao fim da jornada?
Cavallari – Eu sou viciado em diários de viagem. Escrevo a cada fim de dia de minhas aventuras. E escrevo muito! Meus livros nada mais são do que a reorganização daquilo que já está escrito em meus diários de viagem. Eu não crio nada, não invento nada. Posso, sim, enfatizar esse ou aquele viés, negligenciar ou até omitir algo. Já corri maratonas e às vezes tinha pensamentos originais enquanto corria, mas não dá pra parar e anotar, né? Então acho que escrever diariamente, se existir o objetivo de produzir um texto mais tarde, é fundamental.
JQC – Você teve muito tempo de pensar na Martha e no Rodrigo [irmã e cunhado que perdeu precocemente, ambos por doença] na Escócia, mas também no Brasil, escrevendo o livro. Tê-los mantido na obra deve ter sido uma decisão difícil, pois é lícito pensar que eles se afirmavam na sua cabeça na feitura do livro no Brasil, não tanto na trilha. Eu queria um bastidor disso.
Cavallari – Meus diálogos, preocupações e interações com esses entes queridos que se foram aconteceram na trilha, do jeitinho que estão descritos no livro. São coisas que estão nos meus diários de viagem. O trabalho que tive depois foi apenas encaixá-los na narrativa.
JQC – Não houve situações de risco de morte na trilha, apesar de congelamentos súbitos de dedos etc. O que você fez que não recomendaria absolutamente para um trekker menos experiente?
Cavallari – Por ter bastante experiência em aventura, especialmente em trekking e mountain bike, eu tomo diversos atalhos que não recomendaria a aventureiros menos preparados. Nos cursos que ministro friso muito o que chamo de “tripé de sustentação da aventura”, que é: 1) o elemento humano; 2) habilidades e conhecimentos; 3) tecnologia e equipamento. O elemento humano diz respeito a condicionamento físico e estabilidade emocional. Habilidades e conhecimento é tudo aquilo que aprendemos, que assimilamos de forma teórica. Tecnologia e equipamento são as coisas que levamos conosco para a aventura. Esse tripé tem de ser equilibrado, se não a casa cai. Eu às vezes confio demais nos pontos 1 e 2 e negligencio o 3. É comum, por exemplo, eu levar um par de botas velhas para uma longa travessia e sofrer com os pés molhados por semanas, como aconteceu nas Highlands. Não recomendo.
JQC – Num ranking de lugares a caminhar antes de morrer, as Highlands viriam em que posição?
Cavallari –Elas estão no topo da minha lista pessoal. Essa foi uma das maiores surpresas da viagem, e espero ter conseguido passá-la no livro. As Highlands são “o paraíso das trilhas” da Europa e referência no mundo todo. O problema é que as melhores trilhas, como a Cape Wrath Trail, não tem sinalização, não é marcada, sequer existe fora do papel em diversos pontos. Isso quer dizer que ela nunca vai competir com outras mais conhecidas e digeridas, como a Trilha Inca, por exemplo. O que é bom, pois o caminho seleciona o caminhante.
JQC – Qual é a próxima aventura – e o que sua mulher está achando disso?
Cavallari – Vou pedalar cerca de 7 mil K sozinho, de abril a setembro, de maneira autossuficiente, cruzando as extensões norte-sul e leste-oeste da Mongólia. A Adriana está mais empolgada do que eu! Hoje mesmo pesquisou sobre a culinária local (ela cozinha superbem e é fascinada pelo assunto). Ela também descobriu blogs de viajantes alternativos que visitaram comunidades isoladas no país e sugeriu que eu faça um retiro em algum mosteiro budista do país. O incentivo que tenho dela é tão grande que às vezes penso que ela quer me ver longe, muito longe, hahahaha.
Eu tive o meu primeiro contato com o grande Cavallari, quando da divulgação do livro dos pumas. isso me motivou e devolveu o delicioso habito de caminhar pelas montanhas da Serra Fluminense (ultima viagem de 3 dias Muri-Macae de Cima- Rio Bonito de Cima- Muri, acampando e cozinhando em excelente companhia com amigos de 40 anos). Esse meu amigo Paulo Vieira já me expôs à coisas muito legais, mas o Cavallari foi de longe a melhor surpresa. Longa vida, estou devendo a min mesmo uma visita a Gonçalves
Abcs a todos
Numa passagem desse livro, HIGHLANDS: POR BAIXO DO SAIOTE ESCOCÊS, eu questiono o porque do escrever e do publicar, indago sobre a importância da opinião dos leitores. Não apresento resposta à questão no livro, nem creio que exista uma. Mas digo, ainda no livro, que eu talvez escreva para ser lido por meia dúzia de cabeças, cujas opiniões são relevantes pra mim… E Paulo Vieira é uma dessas poucas cabeças. Ler essa resenha do meu livro aqui nesse site — tão precisa, tão profunda, tão simples e certa — é como uma benção. Missão cumprida!