Uma corrida no modo shuffle

Paulo Vieira

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RICARDO HENRIQUE, O MARATONISTA desencanado, apareceu sem mais aquela no meu e-mail – sim, sou old fashioned – e perpetrou as mal-traçadas de hoje.

O bróder teve uma puta ideia, ideia escusado dizer que jamais me ocorreu. Ao sair para fazer seu trezinho matinal na Barra da Tijuca,  jogou a playlist do celular no modo shuffle e deixou a máquina trabalhar como seu personal dee-jay.

Devo dizer que embora reconheça que Sir Edward Elgar e Strokes dão uma força dos diabos no 23K, não corro com música há pelo menos dez anos.

Mas este JQC é ortodoxia zero e já nos brindou com os seguintes playlists de corrida:

COLEÇÃO JQC DE PLAYLISTS DE CORRIDA 

PLAYLIST DO ALFARRABISTA RICARDO LOMBARDI, especial para o JQC

PLAYLIST POPLOAD DE LUCIO RIBEIRO, especial para o JQC

De certa forma, o relato que segue lembra este meu, feito à seco, quando corri tentando registrar escrupulosamente tudo que se passava na minha cabeça, inspirado por Marina Abramovic.

CORRIDA COM ABRAMOVIC

Falei demais. Manda, Brocador.

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SAÍ PARA CORRER, DESTA VEZ levando nos ouvidos um par de fones. No playlist coloquei para tocar todas as músicas que tenho no celular em modo shuffle.

E a primeira sorteada foi Hey tonight, do Creedence Clearwater Revival. Deu pra dar uma boa aquecida já em pace de corrida – o tal tempo run

Na sequência, já por trás do Cità America, os vocais dos Beach Boys me lembraram no clássico Surfin’ safari que o surfe estava se tornando popular muito além da Califórnia. Depois, quase chegando ao canal de Marapendi, começou a tocar Boulevard of broken dreams. Com essa do Green Day entrei num pace mais leve e relaxei.

O ritmo caiu ainda mais ao tocar The Dolphin’s cry, da banda Live.

De repente, um pequeno silêncio entre uma música e outra para a batida acelerar e um riff facilmente reconhecível de guitarra introduzir o medalhão new wave  Dancing with myself. Billy Idol indahouse.

Abri um sorriso, apertei o passo, cumprimentei os garis que podavam árvores na ciclovia do Canal e uma gaitinha antecedeu John Lennon e seus companheiros dos Beatles em I should have known better. A música acaba em fade out e o shuffle, qual um DJ com alguma prática, fez a seguir rolar os vocais de abertura de Let’s Dance, do David Bowie.

Acho que tinha passado do Santa Lucia quando o violão de Brian May anunciou a versão de Crazy little thing called love do Queen.



Incontinente transportei-me no tempo para a Cesário Alvim, Humaitá, três décadas e fumaça atrás, e eu manobrava um Fiat 147 na garagem, tinha acabado de tirar a carteira. Que música boa para correr, é só entrar no ritmo e deixar as passadas marcarem o compasso.

Essa eu não ouvia há muiiiitttto tempo:  I didn’t know I loved (‘til I saw you rock’n’roll), do Gary Glitter. Ela me fez voltar para as matinês do Piraquê – o Jaguar ainda não devia beber! Agora a corrida ganha intensidade com Desire, do U2.

Com o suor jorrando em  profusão, abortei a sugestão seguinte (Passando malCivil) e disse sim a  Keep-a-knockin (Little Richard) para agora chegar ao final da ciclovia inteiramente molhado e sem o sentimento de que o tempo havia passado.

Parei de correr, fui até o cais dos barcos que fazem a travessia do canal, e o iPhone começou a tocar I’m so tired (I haven’t slept a wink), outra dos Beatles. 

(não era o caso!)

Deixei tocar 30 segundos de My Orchid Spirit (Liquid Mind) só para baixar a pulsação e aí entrou Echoes, do  Pink Floyd. No terceiro “pin” do piano dei lima, assim como limei as  seguintes (U2, Liquid Man e Simon & Garfunkel).

Aumentei o volume, amarradão, na hora de Love Shack (The B-52’s).

Já então fazendo o caminho de volta, Money, dos Beatles, me fez lembrar de que tinha de conferir o cartão da loteria. Duas gongadas no DJ depois, veio The Charming man, do The Smiths, boa pra correr, tanto que me deu pique para ultrapassar uma bicicleta e cumprimentar um outro corredor que vinha na direção oposta.

Então veio Imagine Dragons, essa música do Radioactive é muuuito boa, das melhores dos últimos anos, e minha disposição voltou como se estive começando no cascalho naquele momento.

Em algumas provas é proibido o uso de fones de ouvido, porque a música atua como estimulante. Concordo, estimula mesmo.

Deixei rolar só minuto e meio de Blue Sky Mine, do Midnight Oil, ouvi também uma versão sumária do clássico Bizarre Love Triangle (New Order), e aí começou a guitarra distorcida de Tones On Tail, do  Go! – kkkk muito boa, marquei o compasso com os passos e Yah, yah yah, yah… acelerei!

Caramba, outra do The B-52’s, Private Idaho, ainda mais rápido agora! Se não era a música a estimular só podia ser cápsula de cafeína, eu estava muito leve. Chegaram os New Radicals com You get what you give,  o cara canta “Every night we smash their Mercedes Benz” e não é que uma Mercedes passa rasgando sobre um quebra-mola e dá aquela pancada?  

Já são 10K quando surge Don’t dream it’s over, versão acústica do velho hit do Crowded House. Paro então de correr, travo o relógio e sigo andando por trás do Downtown quando uma menina superveloz passa correndo por mim quase propondo um desafio – prefiro ignorar.

Good Golly Miss Molly: Little Richard e seu piano me obrigam a voltar a correr, mas o cabra é rápido demais e passo pra Simply Irresistible, do Robert Palmer. Os pés procuram se adaptar à cadência e confortavelmente se apoiam nas batidas da caixa.

Vamos seguindo. Na cancela do Cità adianto para a próxima música e vem Come Together (The Beatles). Foi só depois do assassinato de John Lennon que fiquei sabendo que aquele som misterioso acompanhado de um eco e palmas de mão batendo dizia “Shoot me, shoot me”.

Paro de correr novamente quando chega Supertrump (não, nada a ver com o cara) em Take a long way home.  Viajo em memórias adolescentes e The Twist, do Chubby Checker, me reanima para dar um último sprint. A música para, a SIRI se desculpa e o som entra de novo.  

Estou em casa, abro o portão (sem Roberto Carlos) e como sempre sou recebido por duas criaturas enlouquecidas que sorriem latindo: Knufi e Kyara, meus golden retrievers, que pulam ansiosamente aguardando a ração.

 

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

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