Na Alemanha, correndo na neve e no lockdown

Paulo Vieira

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QUEM TEM AMIGO TEM TUDO, DIZ O SURRADO DITADO.

Surrado, mas certeiro.

Meu companheiro de mara do Rio, maratonista desencanado Ricardo Henrique mudou lock, stock and barrels para Berlim já tem uma cara.

Como a objetividade jornalística ainda não foi de todo abandonada pelo editor deste pasquim, sejamos objetivos: foi em 2017.

Salvo engano.

Pois bem. Ricardo é pirado pelas longas distâncias, costumava correr de sua casa na Barra da Tijuca para o trampo em São Cristóvão, e essa meia que ele superava cotidianamente tinha a mais cabulosa altimetria que um treino de dia útil pode ter.

Quem conhece os caminhos do Alto da Boa Vista do Rio sabe do que eu estou falando.

Ricardo sai para correr agora em meio às coníferas do norte alemão, como ele já contou aqui quando a pandemia parecia arrefecer na Alemanha em… abril de 2020.

(o otimismo do ser humano deve explicar muitos de nossos prodígios e burradas).

Já falei demais. Tacalepau, Brocador.

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O DIA AMANHECEU NEVANDO. OS CARROS, o jardim, a rua, estava tudo coberto de branco. Uma cena que me convidava a sair.

Em Berlim estamos sob lockdown, mas fazer exercícios é incentivado. Visto uma calça térmica por baixo de uma calça impermeável, duas camadas de blusas mais um agasalho, meias grossas, um par de tênis/bota à prova d água, uma balaclava de esqui que só deixa os olhos de fora, mas com espaço suficiente para respirar sem restrições, um par de luvas que cobre o relógio e estou pronto para sair.

A trilha de corrida do parça

Na pressa nem faço aquecimento, só vou lembrar dele quando já corro pela rua de casa em direção à floresta. A neve continua a cair e pequenos flocos se penduram nos cílios e sobrancelhas, o ar frio entrando pelas narinas me entusiasmam ainda mais, até que um escorregão, por pouco um tombo, me convidam a segurar a franga.

Chego à floresta e o piso está fofo, afundo todo o pé, o que me lembra a areia da praia da Barra, no Rio. O esforço é mais ou menos o mesmo, apenas a tensão é maior. Você fica o tempo todo focado e com a musculatura mais firme, preparado para um deslize, um buraco ou um galho de tocaia.

Sigo pela trilha sendo alvejado por massas de gelo, que despencam das árvores. O cenário está completamente adaptado à nova estação. Árvores sem folhas, galhos e troncos manchados de branco e um vento frio que penetra todas as camadas de roupa.

O inverno é duro, exige muito do corpo, é nessa época as gripes se manifestam, e não é por casual que a Covid-19 esteja botando pra quebrar nesse momento na Alemanha.

O parça, antes de seu iPhone morrer e um galho tinhoso aparecer

Acredito também que o sucesso inicial de prevenção no país ano passado tenha levado à população a baixar a guarda e facilitado a nueva y mala onda. A floresta está mais silenciosa, ouço apenas som da minha própria pisada na neve e sigo a observar a paisagem totalmente alterada.

Com o passar do tempo meu corpo se aquece e me conectado melhor ao entorno. Ao chegar numa leve depressão me deparo com uma pequena aglomeração de pais e filhos deslizando em seus pequenos trenós. Mais adiante, cruzo com um grupo de cavaleiros montados em belíssimos animais trotando pela neve.

Chego ao lago, que tem as margens congeladas e uma fina camada de gelo lutando contra a correnteza. Faço algumas fotos com o celular. A neve agora cai mais forte e, mesmo sentindo o esforço, insisto em prosseguir. Vou até um pequeno povoado onde encontro um grande descampado totalmente submerso em um manto branco de gelo. Tiro o celular para mais fotos e no segundo click o Iphone desliga. Viver na friaca tem disso.

Mesmo correndo muito mais lentamente que o normal, o cansaço reclama algum bom-senso. Retorno então por caminhos secundários, menores, bem mais estreitos e tropeço em um galho escondido pela neve. Foi um tombo daqueles. Aterrisso com as mãos à frente do rosto.

O diagnóstico é “pegou nada”, exceto pelo orgulho um tanto ferido. Limpo a neve da roupa e retomo o pace. Já tomava a trilha principal quando lembro que o celular tinha morrido e que se eu estivesse estropiado e precisasse de ajuda teria de contar com a sorte.

Só que sorte e hipotermia não combinar. O pensamento contudo vai desaparecendo à medida que a corrida volta a pedir minha atenção.

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

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