VAI PARA UM BOM PAR DE ANOS QUE CORRO, mas registro parte relevante dessa maravilhosa atividade apenas desde 2013, ano glorioso do nascimento deste pasquim.
Corrida, contudo, não costuma ser um laboratório tão prolífico para alguém erigir um novo Em Busca do Tempo Perdido; por isso, dado que minhas pretensões literárias não são pequenas, tento diversificar as experiências no cascalho.
Os poucos que me seguem por aqui já tiveram oportunidade de conhecer a “corrida à Abramovic”, em que, às favas com a modéstia, criei uma nova maneira de fruir a coisa toda.
A ideia é tentar observar diligentemente todos os fatos que são apreendidos pelos sentidos durante o cascalho; e, além disso, tentar preservar essas centenas ou milhares de estímulos na memória, na ordem mesma que aconteceram.
Espeto, em uma palavra. A “modalidade” de corrida leva esse nome por de alguma forma emular uma das tarefas a que se dedicou a famosa performer sérvia Marina Abramovic – no caso dela, colecionar e registrar todos os fatos comezinhos e excruciantes de um dia perfeitamente ordinário.
Há aqui outros tantos relatos, alguns mais convencionais, outros menos, como aqueles de provas. Minha primeira maratona, por exemplo, coroada com um inesperado pique com minha filha mais velha poucos metros antes do pórtico de chegada.
Pois bem, ontem vivi uma experiência inédita no cascalho.
Meninos, eu vi, quero dizer, meninos, eu não vi.
Local: praia de Jurerê, norte de Florianópolis. Modalidade: correr de olhos fechados.
Corri toda a extensão da praia, em ida e volta, ampliando o itinerário, como de costume, até as prainhas de Canajurê, que separam (ou unem?) Jurerê de Canasvieiras. Algo como 11K, talvez 12, e 1h05 de corrida, algo assim.
Sem boné, tampouco óculos escuros, o sol castigava meus verdes-piscina sem mais aquela. Pra sofrer a enésima crise de herpes zoster ocular, tava facinho.
Surgiu então a ideia.
Comecei a fechar os olhos por trechos curtos, 10 ou 20 passos. Reabria para me certificar de que não colidiria com os poucos banhistas ou com uma pedra insolente e voltava a fechá-los; e assim fui indo, tentando prolongar os períodos “cegos”.
Meu recorde de olhos fechados não foi assim exatamente uma ultramaratona. Oitenta passos, algo como 100 metros. Mas no cômputo geral, somando tudo, corri muito mais tempo, 3/4 do tempo total, quem sabe mais, de olhos fechados.
Houve duas situações mais problemáticas. Um zigue-zague que quase me joga para uns bancos de areia e a fina numa pedra. No mais, tive a nítida de sensação de que melhorava à medida que corria de olhos fechados. Senti que, apesar de usar máscara, corria com menos esforço do que de costume.
Seria ilusão? Pois fui então perguntar para o ultramaratonista gaúcho Vladmi Virgílio, que perdeu a visão no começo de sua vida adulta, o que ele achava.
Não que as sensações vividas por mim ontem e as por ele cotidianamente fossem as mesmas, já que na praia eu podia me dar ao luxo de abrir os olhos de quando em quando; assim, deixava meu cérebro tranquilo em relação à manutenção da integridade física de seu pateta portador.
Disse-me então, de Rio Grande, por zap, o amigo Vladi, que é detentor do recorde mundial de provas de longa duração sem auxílio de guia, quebrado ano passado na Extremo Sul, 226K e pouco mais de 47 horas só o camarada, cajado e pensamentos pela costa sul do Rio Grande do Sul.
“Paulo, você faz menos esforço sim. Eu já percebi isso. Na Extremo Sul [de 2019], me orientei o todo tempo pela água. Larguei tranquilo, só percebendo a natureza à minha volta, e cheguei em 11º entre todos os atletas. Ao não ver quem eu ultrapassava, fazia um esforço mental menor, tinha pensamentos bons, a corrida fluía relaxada. Com mais prazer, a gente vai mais longe, a endorfina liberada é maior, o rendimento é melhor.”
Obrigado, brow.
Para bancar as provas que faz pelo mundo, Vladmi faz palestras motivacionais para empresas. Curiosamente, fez uma em Jurerê, onde corri ontem. E terminou levando a audiência para correr meio quilômetro na areia da praia. Correr com os olhos vendados, bem entendido.
“Alguns caminharam, outros trotaram, uns foram bem rápidos. Todos se surpreenderam, teve gente que me disse que estava com muito medo.”
O Vladmi é tema de um dos capítulos do livro O esporte como ferramenta de transformação, da editora Gregory, que traz 17 biografias de atletas amadores e profissionais. Como os do ex-jogador Guerrinha e da pivô Kelly Santos, ambos do basquete, e da piloto de motocross Laninha Lopes. A versão digital custa R$ 44,91, já está à venda no site da editora e o Vladmi tem direito a parte da receita.
Não fosse a pandemia, Vladmi encararia um desafio de 1000K (sim, três zeros depois do 1) por Portugal em abril. Por isso, ele decidiu fazer os milzinho na esteira de casa.
Vai vendo. Ou não.