As lições de Don Juan e Murakami

Paulo Vieira

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Na noite em que Don Juan se encontra com Castañeda, relatada nas páginas iniciais de “A Erva do Diabo”, o místico convida o jovem antropólogo (acho que o autor era antropólogo) a dormir em sua varanda. Sobre o chão. Castañeda, acostumado com camas e colchões, reclama da situação. Don Juan, à maneira do mestre do Gafanhoto, devolve na bucha, ensinando-lhe a primeira lição: “Encontre seu ponto.”

Depois de uns 10 minutos à procura de tal abstração, Castañeda acha a embocadura entre seu corpo e o chão, e dorme.

Há nas corridas algo parecido. O ponto é mais conhecido por ritmo – ou “pace”, para usar o esperanto. Mesmo que você não saiba direito qual ele é, você tem um ritmo. O meu está, acredito, na casa dos 11k/h. Surpreendi-me recentemente na corrida que fiz no Minhocão, relatada aqui, com uma velocidade maior do que a habitual. Nos últimos cinco anos, seis talvez, tem sido muito difícil alterar meu pace. É do começo ao fim a mesma tocada. Se por um lado isso mostra que tenho potencial para ultrapassar a barreira dos 20K e das meias maratonas, isso também mostra a dificuldade que meu corpo tem em se adaptar a planilhas e esses treinos de tiro-e-trote que os preparadores passam a seus pupilos.

Há a barreira física e, suponho, alguma barreira psicológica. Fazer sozinho uma corrida com rompantes e descensos súbitos me parece uma missão bastante exigente.

Tudo é uma questão de adaptação, dirá Mr. Commonsense. Relendo o ensaio sobre corridas do ficcionista japonês e ex-ultramaratonista Haruki Murakami, separei uma passagem muito interessante a esse respeito. “Músculos são como animais de carga”, diz ele. E segue: “Rápidos em entender as coisas. Se você aumenta a carga cuidadosamente, pouco a pouco, eles aprendem a puxá-la.”

A lição que fica pra mim vem logo depois: “Se, porém, a carga é aliviada por alguns dias, os músculos automaticamente assumem que não precisam mais trabalhar tão duro, e baixam seus limites. Músculos são de fato como animais, e querem ficar no maior conforto possível; se nenhuma pressão é aplicada sobre eles, eles relaxam e apagam a memória de todo o trabalho (…)”

Isso parece bastante óbvio para quem faz musculação e mesmo atividade aeróbica diversas vezes por semana. Para mim, contudo, soa como revelação. No livro, Murakami conta como se obrigava a correr pelo menos seis vezes por semana, 10K por vez. Eu não tenho esta pachorra, deixando para fazer 15K duas vezes por semana, quando muito. A partir de agora, vou tentar seguir o “treino Murakami”. Vamos ver o que acontecerá com o meu pace.

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

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