Ginástica para a cabeça

Paulo Vieira

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Em seu último e pequeno filme, Madadayo, o longevo diretor japonês Akira Kurosawa (1910-1998) criou um personagem que eu ainda não consigo esquecer mesmo passados 21 anos de sua exibição em algum Belas Artes-Aleijadinho da vida. Possível afinidade eletiva.

O sujeito era o menos preparado intelectualmente dentre vários ex-alunos que estavam reunidos num clube ou algo do tipo para homenagear um professor que anunciava sua aposentadoria. Entre rodadas de saquê e cerveja, todos, cada um na sua vez, lembraram algum prodígio ou anedota do professor; ou talvez tenham recitado poesia; todos, de qualquer forma, expressaram algum saber erudito, como cabia à ocasião.

Pois o personagem que se plasmou na minha memória, não sabendo o que dizer na sua vez ao microfone, decidiu listar, em ordem geográfica, todas as estações de trem de um determinado ramal, não de Tóquio, mas do Japão inteiro.

Lembrei desse personagem quando tentava me entender com o metrô de Tóquio, na minha própria saga pelo Japão, e me lembrei dele novamente hoje, quando já não aguentava mais correr.

Estava no Parque Villa-Lobos e a monotonia já começava a incomodar meus pensamentos, muito mais do que dores musculares ou câimbras, que não apareceram.

Temi não conseguir completar a volta, e assim perfazer com uma nota negativa meus moderados 13, 14K do dia. Foi então que eu decidi recitar mentalmente, à maneira do personagem de Kurosawa, as estações da linha Esmeralda da CPTM, a começar pelo Jaguaré, ou Ceasa, que era(m) bem ali ao lado. Consegui chegar, talvez pulando algumas, ao extremo sul da linha, ao Grajaú, e, mais importante, completei a corrida.

Deu tilt
Deu tilt

Essa fadiga mental gosta de me incomodar, especialmente em provas. Já chamei meu incômodo com as placas de marcação de quilometragem e o efeito depressivo que elas geram de síndrome de linha de chegada. Como ainda estou para correr uma maratona, não sei se preciso de mais treinamento mental ou físico.

O educador esportivo Mario Sérgio Silva, proprietário da assessoria esportiva Run & Fun, diz que não preconiza uma ginástica mental a seus maratonistas, embora reconheça que a “cabeça é muito suscetível”.

Nós não nos aprofundamos muito na questão psicológica, acho até uma falha, porém sempre fazemos uma reunião pré-prova e outro speech pré-aquecimento, e aí falamos da importância da visualização mental da prova: de imaginar o ritmo, de pensar como vai ser a hidratação, de imaginar o que vai acontecer na hora em que o ‘urso te agarra’.” (Nota do tradutor: quando a onça bebe água; nota do Tradutor 2: quando você não tem mais perna para chegar ao próximo lugar de beber água).

Pelo sim, pelo não, deixo o mapa da CPTM, que tem muitas outras linhas com nomes de pedras preciosas, aqui; o mais sucinto mapa do metrô carioca também vai aqui. O de Salvador, inaugurado este ano, é pateticamente curto, então minha sugestão é que você liste as praias da capital baiana. E nada de começar num farol e terminar no outro. Aumenta isso aí: do Flamengo ou Stella Maris até Inema, no subúrbio, e vice-versa, isso já deve ocupar a mente por uns bons 2K.

Mais sobre esse assunto aqui.

 

 

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

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