Solonei na encruzilhada

Paulo Vieira

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A PANDEMIA MODIFICOU O HÁBITO DAS PESSOAS. Conte-me uma novidade, você com justeza replicará.

Sigo: corredores amadores dispostos a evitar riscos de contágio nas ruas improvisaram circuitos de treinamento em suas próprias casas e apartamentos. E você, novamente, me dirá: ah vá.

Insisto, de qualquer jeito (falta ao português uma boa tradução para o termo inglês “anyway”). Já mostramos aqui diversos exemplos de pessoas que mantiveram sua dieta diária ou semanal de corridas no implausível recesso de seus lares.

Lá no Recife, os associados da Acorja não param de acumular quilometragem em circuitos que contornam camas, fogões, cadeiras, o velocípede do júnior.

Mas e quanto aos profissionais do negócio, os atletas do famoso “alto rendimento”? – eis a marca de texto em introduzimos de uma vez por todas o que nos traz aqui. Como cumprir a planilha quando pistas, clubes, centros de treinamento e parques estão fechados?

Espeto.

Treinadores adotaram programas com fortalecimento e exigências específicas que podem chegar a 35-40% do volume desejável de treinamento.

Alguns atletas acabaram por se beneficiar de um dos efeitos da pandemia, o adiamento da Olimpíada. Ganharam tempo para se preparar melhor para as provas que oferecerão índice olímpico. No caso da maratona, segundo a World Athletics, o órgão regulador, elas começam em 1 de dezembro e se encerram em 31 de maio. Falaremos mais disso parágrafos adiante.

O paulista de Penápolis Solonei Silva, um dos três maratonistas homens da delegação brasileira dos Jogos do Rio, ficou bolado com o novo calendário.

Hoje com 38 anos, Solonei terá em Tóquio sua última chance olímpica. Foi mal no Rio, como de resto todos os demais maratonistas brasileiros. Mas, sem patrocínio, ele hoje vê como extremamente duvidosa sua participação na Olimpíada.

O busílis é que, nas palavras de Solonei, “sou chefe de família”. E isso faz-lhe sopesar excruciantemente os prós e contras do investimento olímpico. “Tem atleta que está passando fome”, diz. “Quem imaginou que participar da Olimpíada do Rio significaria ter um outro status depois [dos Jogos] se enganou.”

Uma preparação adequada para um atleta de seu quilate exige algumas semanas treinando num camp de altitude – Paipa, na Colômbia é o polo tradicional dos brasileiros – e os custos envolvidos numa viagem para uma prova sem grandes obstáculos para quebras de recorde (isto é: corridas sem subidas disputadas sob temperaturas baixas e preferencialmente ao nível do mar).

No Brasil, só Porto Alegre, e olhe lá, tem essa característica.

O diabo é que a maratona de Porto Alegre foi adiada de maio para novembro, e, portanto, não figura no prazo da “janela olímpica”. Quanto a 2021, não se sabe se ela voltará a acontecer em seu mês tradicional, maio.

Se grana não fosse a variável crítica, Solonei poderia tentar o índice olímpico em Valência, na Espanha, em 2 de dezembro, como farão outros brasileiros. Mas o atleta, que recentemente se formou em Educação Física e passou com isso a ser seu próprio treinador, não tem essa prova em sua wishlist.

Solonei tem consciência que está longe de seu melhor tempo – o 2:11:32 conquistado em Pádua, na Itália, em 2011, mesmo ano em que foi ouro no Panamericano de Guadalajara. Mas um 2:16 cravados na Mara de São Paulo da Yescom de 2018 renovou as esperanças, especialmente por conta de o atleta vir de recuperação de uma cirurgia para remover um esporão de calcâneo no pé esquerdo.

Mas conquistar o índice para as duas únicas vagas que restam na maratona é dureza. Precisa correr um segundo abaixo de seu recorde de Pádua. O outro caminho é o ranking geral de seus últimos resultados, que, por conta de lesões, também não foram bons.

É por isso que, em entrevista ao JQC, Solonei diz que “tem receio de gastar a grana do próprio bolso sem contrapartida.”

“Treinamento para o atleta de alto rendimento não é para qualquer um, até chegar na competição são de 3 a 4 meses ralando, é preciso preparar-se adequadamente, fazer camp [de altitude]. Tem 1001 situações para colocar na mesa.”

Solonei em Bragança Paulista: Foto: Renato Pizzutto

Solonei sabe que “há muitos clubes fechando” e “cada vez mais atletas em dificuldade”. É que pode “não ter o que comer direito” mesmo que participe de Tóquio. “Como vai ser depois?”

Solonei formou-se em educação física em Bragança Paulista, cidade para onde foi morar quando a cidade começava a viver a debacle da Rede Atletismo, que fez da cidade por pouco tempo um polo do alto rendimento brasileiro.

A Rede, que tinha atletas como Mauri Maggi, durou apenas meia década, derrubada por um escândalo de doping.

Ao tornar-se seu próprio treinador, rompeu com o antigo, Ricardo D’Angelo, da Orcamp, de Campinas. Ao JQC Solonei justificou a decisão com um pensamento tortuoso. Disse que atletas hoje em dia precisam manter forte presença nas redes sociais como contrapartida a apoios e eventuais patrocínios.

Nas redes, segundo ele, exibir a filosofia de outro treinador não seria “ético”.

Na verdade até o deslocamento de 70K entre Bragança e Campinas contou na decisão. O rompimento não separou completamente a dupla. No começo do ano, ainda pré-pandemia, Solonei chegou a sondar Ricardo para que ele lhe indicasse uma prova para tentar o índice.

Solonei vive mais do que nunca o momento de transição de sua carreira – a maneira eufemística com que o esporte chama a aposentadoria atlética. Não é impossível que ela se dê este ano, em favor do incremento de sua atividade de treinador.

Nestes dias de pandemia, não sai de casa, onde apenas faz fortalecimento e pedala. Considerou que correr nas ruas a 30, 35% da exigência necessária para um atleta como ele, do alto rendimento, não pagaria a pena, dados os riscos de contaminação envolvidos.

É uma situação muito diferente da vivida pela campeã panamericana da maratona Adriana Aparecida da Silva, que vinha se recuperando mal de uma cirurgia feita no final de 2019. Não houvesse o coronavírus e o subsequente adiamento da Olimpíada, ela não teria condições de lutar pelo índice olímpico.

Estaria fora”, disse sem meias palavras ao JQC Cláudio Castilho, seu treinador. Com os Jogos transferidos para 2021 ela ganhou tempo para recuperação. O índice vai ser tentado em Valência, na Espanha, em dezembro.

Como é integrante do clube Pinheiros, não tem as perturbações financeiras que afligem Solonei.

 

 

 

 

 

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

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