POR ALGUNS POUCOS MESES, talvez semanas, num passado já perdido nas dobras do milênio, eu ganhava o cascalho trajado com um adereço que jamais voltei a colocar no torso — e no pulso.
Chamava-se frequencímetro, era da popular marca Polar e não deve ter me custado mais de 100 mambos de dinheiro da época, creio que já se tratava do real.
Usei pouco, pois repetidamente marcava números perigosamente altos — entre 180 e 200 –, índice que na minha idade já provecta significava algo como 100% do esforço cardíaco.
Era muito claro contudo que eu estava longe da zona de intensidade máxima, como ficaria ainda mais patente ao longo dos anos, quando minha performance e condição cardiovascular ganharam octanagem.
O MANUAL MURAKAMI PARA ULTRAMARATONISTAS INICIANTES
Há muito tempo não meço meu batimento cardíaco durante as corridas. Conheço a minha, er, zona de conforto, e só a atravesso em raros momentos em que faz algum sentido soltar a cavalaria, como uma prova de 15K da Adidas, em que enfrentei um rival mais ou menos imaginário.
O problema é que os ganhos de condicionamento físico acontecem quando quebramos a tal da homeostase, ou o que na imagem do romancista japonês Haruki Murakami significaria “enganar os burros de carga”, como ele, salvo engano, chama nosso corpo (na verdade nossas pernas, mas releve)
É que o burro de carga a todo momento quer descansar.
Sobre o mesmo tema, em entrevista recente a este pasquim, o diretor da Escola de Educação Física da USP, Júlio Serrão, foi lapidar:
“(…)O problema é quando a linha é rompida, quando há um estímulo muito maior. Todo atleta anda no fio da navalha. Se usar um estímulo menor, não tem adaptação nenhuma; se usar um maior, tem lesão; se usar um estímulo ótimo, e é difícil conhecê-lo, esse que é o pulo do gato, você tem adaptação de tecido.”
Júlio respondia a uma pergunta específica sobre o joelho, por isso o “tecido”, mas vale também para o aparelho cardiovascular e, grosso modo, para o corpo.
Com tudo isso, voltei ontem ao livro A semente da vitória, best seller e filho literário solitário de Nuno Cobra, muito famoso preparador físico que também já andou por estes pixels, como você vê aqui.
Nuno, como é amplamente sabido, é grande defensor de um método de ganho de condicionamento físico gradativo, bastante vagoroso, em linha com a boa alimentação e com o descanso adequado — chega mesmo a prescrever nove horas diárias de sono; e é inimigo figadal da hipertrofia e do que chama de “massacre do corpo”.
Na corrida, ele concede que há enormes ganhos, psíquicos sobretudo, para quem conclui uma maratona, desde que isso não signifique, novamente, um “massacre do corpo”.
Mas vamos ao que interessa. Falava no começo deste texto de frequencímetro, e minha longa digressão se fecha aqui. Porque Nuno criou uma espécie de frequencímetro natural. No capítulo 7 de seu livro, ele ensina o leitor a encontrar esse seu “Polar” interno.
Ei-lo, em suas próprias palavras: “durante a atividade física, depois de inspirar, vá soltando o ar enquanto tenta dizer pausadamente e sem nenhuma interrupção: ‘Eu moro para lá de Paranapiacaba’. Se não conseguir dizer isso com uma única tomada de ar, é sinal de que o trabalho está forte para o seu organismo.”
Fiz o teste hoje mesmo num 14K cumpridor, boa parte dele na Cité Université Armando Salles de Oliveira. Passei fácil.
Por isso, se quiser elevar um pouco mais a dificuldade, vale tentar a seguinte variante:
“A institucionalidade de Itaquaquecetuba impossibilitou que paralelepípedos extraviassem-se em Caraguatatuba.”
Foto da home: Polar Brasil (Facebook)
Paulo
Passando para deixar um super abraço de Natal, embora um pouco ausente!
Adoro o que vc escreve, e sou super fã
Abcs
Querido Bellas, sua leitura amorosa e generosa me motiva a seguir no cascalho. Desejos recíprocos de bom fim de ano e grande 2020. Espero finalmente vê-lo em algum dia do ano – falhei miseravelmente em ir ao Rio em 2019… Grande abraço.