A incrível história da corredora Animal contada pelo incrível jornalista Chico Felitti

Paulo Vieira

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MUITOS CORREDORES CONHECEM OU SUPÕEM CONHECER Ana Garcez, a Animal, atleta treinada pelo Wanderlei Oliveira, o famoso W.O., tido como um dos precursores da corrida de rua em São Paulo.

Animal participa de algumas provas famosas, especialmente meias maratonas, como a de Nova York.

Em março deste ano, num frio do capeta, não só correu como ganhou na sua categoria, a partir dos 55 anos. Mas Animal é menos lembrada por suas marcas de prova do que pelo passado, duríssimo, em que viveu década e meia pelas ruas de São Paulo.

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Pois digo: só mesmo um jornalista com a tesão por contar histórias como o Chico Felitti, que encontro periodicamente lá na redação da revista PODER, é capaz de desvendar uma personagem como ela.

Em sua última colaboração para o Buzzfeed, ele perfila a Animal de maneira semelhante ao perfil que fez, também para o Buzzfeed, do Ricardo Corrêa da Silva, o Fofão da Augusta.

Chico passa semanas, meses, com seus perfilados, e não é incomum que o repórter se torne elo, às vezes o único, entre eles e a família, a sociedade e o próprio passado dos caras.

Com Animal não foi diferente. Um pequeno exemplo: embora ela sempre dissesse que saiu da Febem direto para as ruas, Chico descobriu que a história não era bem essa. Não havia registros de sua passagem por lá, e ele disse isso a ela, na passagem que segue.

Falo pra ela que entrei em contato com a Fundação Casa, a instituição que até 2006 era chamada Febem, e que não há registro dela. Pergunto onde ela cresceu de verdade. “Tá, não foi na Febem, Febem. Foi numa creche, com as freiras. Eu digo que foi na Febem porque é mais forte. Mas não era muito diferente, viu?”, ela ri. E depois revela que foi criada num orfanato de freiras, ao lado do aeroporto de Congonhas.

No parágrafo seguinte, Chico descobre a creche. “Pesquiso e o lugar, que se chama Creche Baroneza (com zê mesmo) de Limeira, ainda existe. É um casarão em frente ao aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Para a minha surpresa, Animal diz que ia achar “da hora” rever o lugar onde ficou dos poucos meses de idade à maioridade.”

O passeio que repórter e perfilada fazem à creche, a primeira desde que Animal abandonou o local 16 anos após ter sido deixada ali numa “caixa de sapato”, é só mais um dos grandes momentos da reportagem.

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Não perguntei isso a ele, mas é de imaginar que Chico volta sempre seu radar para gente esquecida, com pouca ou nenhuma voz na mídia, algo na linha do velho Eduardo Rascov, o Eslavo, cujo  romance O Filósofo Voador conta ou reconta a história do acrobata Dover Tangará, famoso e glamouroso nos anos 1960, que Esla descobriu vivendo nas ruas de São Paulo, em Pinheiros.

A HISTÓRIA DE DOVER TANGARÁ, POR ESLAVO RASCOV

Mas estar esquecido não parece ser suficiente pra Chico. A história de Animal tem “gancho”, já que ela, que começou a correr com “short, tênis e camiseta” guentados pelos meninos com quem vivia nas ruas, vem atingindo as melhores marcas de sua carreira justamente agora, aos 55 anos.

Cinquenta e picos é, ou costuma ser, a época em que declinamos fisicamente todos.

Além disso, e esse é na verdade o grande gancho, Animal está para ser despejada do local em que vive há 17 anos, o ginásio do Ibirapuera, que passa por processo de privatização.

Essa parte não é nada sonegada na história. Saca.

“O chamamento público para empresas interessadas em reformar e administrar o lugar, entretanto, afirma que a pista será demolida (“para a implantação de uma arena coberta com capacidade para 20.000 pessoas”, diz o documento), e que o estádio em que Animal mora, mostrado em um desenho em que seu quarto não aparece, vai ser “renovado e atualizado tecnologicamente”. Converso com cinco pessoas envolvidas no projeto. Nenhuma delas sabia da existência de Animal dentro do ecossistema do Conjunto Esportivo.

E segue.

Converso com um dos advogados que mais entende de direito a moradia em São Paulo. Ele, que pede para não ser nomeado porque ainda não há caso e precisaria conhecer os pormenores, afirma que, por mais que a Constituição vete que Animal peça o quarto para si porque mora lá há 17 anos, ela tem direito a pedir na Justiça a realocação para uma moradia similar, em um bairro ali, custeada pelo governo.

Animal does NY/Foto: Facebook Ana Garcez

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Ao longo dos 50 mil toques da reportagem – algo como 25 páginas de um livro –, Chico se mistura com a história. Ele narra como Animal vai se afeiçoando ao repórter a partir de um início nada promissor. O grand finale é o momento em que tem acesso ao conteúdo de uma estranha e numerosa coleção de malas e mochilas, tesouro até então interditado a qualquer pessoa exceto a proprietária.

Não faria qualquer sentido exigir distanciamento do repórter, já que para entender o personagem é preciso também entender a relação que ela passa a ter com o narrador, mas creio ver na persistente presença da primeira pessoa em seus relatos um escrúpulo.

Algo como Eduardo Coutinho filmando o próprio bastidor de seus documentários para deixar claro que até mesmo o mais sensível e cuidadoso entrevistador não consegue deixar de alterar de alguma forma a realidade do entrevistado.

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Talvez tenha falado mais de Chico do que da Animal, o que me parece justificável, uma vez que Chico esgotou o assunto – repito aqui o link da história no Buzzfeed – e meu contato com ela foi meramente visual, num dia em que eu entrevistava o W.O..

Para saciar sua curiosidade, o tempo dela em Nova York em março, 1:30:54, a colocou entre as 150 mulheres mais rápidas da prova. E foram 11 081 as participantes.

Nada mal para quem consumiu o seguinte coquetel ao longo de uma década e meia.

Enquanto ela anda pela rua Basílio da Gama, no centro, repisa seu passado. Nos anos de rua, só não usou crack. “Porque ainda não existia crack, né, graças a Cris.” Ela chama Cristo de Cris. De resto, muita coisa passou por seu organismo: cola, benzina, éter, criolina. Quando não conseguia dinheiro, ia a postos de gasolina e dizia que tinha derrubado graxa na roupa e pedia no posto solvente para tirar a mancha imaginária. “Queimava o estômago antes de subir pra cabeça.” Hoje, não toma nem refrigerante. “Eu já fui tão viciada em droga que não preciso mais de nada. Deu.

Por fim, mais uma linha sobre o Chico. Disse sexta-feira ao parça que só ele para fazer matérias desse tamanho, com tamanho comprometimento de tempo – de vida, melhor dizendo – com o perfilado, e ele respondeu simplesmente: “Preciso comer”.

Mesmo assim, na hora de viajar para Nova York para ver o objeto de seu trabalho em ação, como ele julgou adequado fazer, quem banca a passagem é ele mesmo.

O Buzzfeed pode até pagar bem, mas duvido que o cachê cacife uma econômica de ida e volta para Nova York mais uma apuração de cerca de seis meses.

 

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

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