Sofrendo em loop na mara de Sorocaba

Paulo Vieira

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NÃO FOSSE O MARATONISTA UM SUJEITO que gosta de correr com o menor peso possível atado ao corpo, ele estaria vestido com aquelas roupas inteiriças de vinil, máscara tomando-lhe todo o rosto, correntes envolvendo o torso, aberturas estratégicas sob o ventre.

É que não há fetiche maior que a maratona, e isso já está bem estabelecido pelas sociedades de psicanálise mundiais tidas como sérias. Tomemos o caso de nosso colaborador Ralph Tacconi, o Monstro de Curitiba.

Mal desembarcado de Berlim, vindo de sua maratona do semestre, não esperou dois meses para viver outro Dia M. Ralph alinhou domingo passado para outros 42K, desta vez os da Mara de Manchester.

A paulista, bem entendido.

O brother conta como foi.

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SABIA QUE SERIA DIFÍCIL CORRER uma maratona no Brasil após o sonho de Berlim.

Depois da prova alemã, fui empurrando a corrida com barriga.

Uma mudança de emprego com direito a novos horários de trabalho e a DPM (a famosa depressão pós-maratona) fizeram com que eu levasse a rotina de treinamento nas coxas.

Mas ainda tinha algumas provas em 2017 a cumprir, como esta maratona de Sorocaba.

Havia me inscrito antes de Berlim, cogitei algumas vezes em desistir, mas por fim decidi “prestigiar” o evento, que estreava. 

Uma estreia, aliás, inovadora. Foram dois dias de provas, no sábado e no domingo, com medalha especial para quem participasse dos dois desafios.

No sábado, havia as provas de 5K e 10K; no domingo, a meia e a mara.

Chegamos, minha parceira Fran e eu, no sábado à tarde e fomos buscar o kit numa loja parceira do evento. Alguns itens anunciados para o kit ficaram de ser entregues na prova.

Ficaram só na promessa.

À noite, resolvemos pegar um cinema no shopping próximo para passar o tempo. No meio do filme, um temporal derrubou duas vezes a energia.

A tempestade, saberíamos depois, trouxe problemas para a organização da prova, derrubando tendas e atrasando a programação.

Fran iria correr a meia, eu, a maratona.

Largamos juntos uns 15 minutos depois do horário combinado.

Não tinha preparo mental nem físico para correr forte. Na largada senti certa afoiteza e procurei segurar.  Encontrei um amigo logo nos primeiros quilômetros, mas ele tinha pretensão de ir mais forte. Acompanhei-o por pouco tempo falando de planos futuros.

A prova tinha algo que eu não gosto: loop. Eram duas voltas de 21K. 

Tenho bastante dificuldade com isso. Em alguns desafios de triatlo com loop, acusei o “mental” e acabei não conseguindo ser constante – nem na corrida nem na bike. Sofria no começo, melhorava no fim.

Por isso, em Sorocaba, fui bem conservador no começo.

No 12K, numa das 512 checadas por minuto que dou pra ver o ritmo, vi o sinalzinho do fim da bateria no relógio.

Ferrou.

O relógio é companheiro inseparável nas minhas corridas. Vivemos uma relação de amor e ódio. Converso com ele o percurso todo. “Tu tá de brincadeira, eu me matando e tu me mostra isso?”; “Caraca, irmão, tamo bem hoje”, eis algumas falas que dirijo a ele.

Com o relax dos treinos semana passada, não o coloquei para carregar.

Perdi meu amigo com menos de um terço de prova.

Como diria Vladimir Ilitch, “que fazer?” 

Seguir.

À perda do companheiro juntava-se a pobreza visual do percurso. Terrenos baldios nas margens, subidas e mais subidas. Em algumas delas, filas de carros buzinando.

A cidade não esperava a prova. As avenidas eram separadas por cones, os carros dividiam o mesmo asfalto dos corredores.

Com o buzinaço e os xingamentos, veio uma certa deprê. A lembrança de Berlim era inevitável.

As coisas na minha cabeça, conforme previra, só se encaixaram mesmo a partir da segunda volta. Parecia que a prova enfim começava. Isso depois de superar a vontade de entrar na fila dos que iam concluir os 21K.

Sem meu companheiro no pulso e com o começo da chuva, aumentei a concentração e procurei manter o ritmo mais constante possível.

A organização da prova se esforçou, entregando boa hidratação aos corredores. Só tomo água, e não tenho do que reclamar, mas ainda vi distribuição de isotônico e refrigerante por funcionários atenciosos.

Ouvi até um “homem bonito não paga, mas também não leva”. Certamente não era um elogio para mim. Não existe beleza em maratonista depois de 30K de asfalto.

No 40K vejo um jovem alto e forte, de 20 anos, 30 no máximo, caminhando. Mandei:

 – Bora, jovem, tá acabando. 

Ele começou a me acompanhar.

– Estou com câimbras desde o 26.

– Falta pouco. Vamos juntos até o fim.

– Vim para fazer sub 3. Na maratona de SP foi a mesma coisa. 

– Esquece isso agora. Quanto tá o pace?

 – 5:09

– Então vamos, ainda dá pra fazer um tempo bom.

Ele correu mais um pouco e estacou, colocando as duas mãos sobre os joelhos. 

– Não dá mais.

– Dá sim, brother, vamos…

– VAI VOCÊ, PORRA, TERMINA SUA PROVA. ACABOU PRA MIM, o cara urrou, assim mesmo, em caixa alta, no meio da avenida.

Depois dessa, me sentindo o sujeito mais chato do mundo, continuei sozinho. 

Cruzei o pórtico de chegada em duras 3:37 algo.

Depois de Berlim, Sorocaba/Foto: Arquivo Pessoal
Depois de Berlim, Sorocaba/Foto: Arquivo Pessoal

Embora não me sentisse ótimo, não estava em frangalhos, como geralmente acontece.

Num percurso difícil e desanimador, em loop, sem noção do ritmo, eu terminava a minha quarta maratona no ano. 

Quem disse que iria ser fácil?

Mas o ano ainda não acabou. Daqui a duas semanas vou a BH encarar os 18K da minha primeira Volta da Pampulha. 

Depois encerro o ano na São Silvestre. E naquelas mentiras que nós corredores gostamos de contar para nós mesmos, nessas duas devo ir sem pretensão de tempo.

Apenas para curtir.

Aham.

Em 2018, Santiago e Rio já estão certas. SP City e outra no segundo semestre, na mira.

No ano que completarei a décima maratona e a quadragésima primavera, histórias e sofrimentos já estão garantidos.

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

2 Comentários

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    Saulo Thomaz da Silva

    Grande ralph … como sempre épico nas suas resenhas esportivas 🙂 no passado falávamos de futebol e faziamos nosso “mesa redonda” na praça do trabalho rs agora estamks nós trampando longe, mas unidos pela amizade e resenhas do esporte ! Se Deus quiser, 2018 farei minha primeira maratona 🙂 abraco e parabens pelo atleta e pessoa que é !!! Ate o proximo texto, estou adorando ler …. e divulgando pros amigos 🙂

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  2. Avatar
    antonio muknicka

    Obrigado Paulo pelas palavras sobre a organização. Tentamos entregar uma prova em que a organização não atrapalhasse tanto o atleta. Tbm estreiamos nessa distancia. abs

    Responder

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