Na maratona de Berlim, com a roupa do corpo e um tênis comprado na hora

Paulo Vieira

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DADA A QUANTIDADE DE COMENTÁRIOS positivos enviados a este pasquim em reação à publicação de seu primeiro texto aqui, semana passada, cheguei à conclusão que deveria passar a batuta deste negócio de uma vez para ele.

Porque nos 4 anos e fumaça deste amável JQC, elogios aqui só do querido Antônio Bellas. Sou aquele candidato a vereador que não é votado nem mesmo pela própria mãe.

Ele, o debutante neste pasquim, é o analista de sistemas formado em ciências biomédicas Ralph Tacconi, o monstro de Curitiba, que disputou domingo passado a maratona de Berlim, sua primeira “major” e oitava mara de seu currículo endorfínico.

Ele diz como foi.

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DESEMBARQUEI EM BERLIM na sexta, 17h, antevéspera da prova. Primeira supresa: das duas malas despachadas, apenas uma foi me encontrar na esteira de bagagem.

“Mala da maratona” poderia ser o nome da outra. Ali estava todo meu dress code da prova, incluindo os dois tênis que levei para a corrida, os mesmos de meus treinos longos no Brasil.

Depois de um processo burocrático e demorado, eu e Francine, minha namorada que também correria a maratona, saímos do aeroporto direto para a expo da prova, a fim de retirar o kit. Eu só com a roupa do corpo.

Nova frustração: os poucos onze minutos de atraso na nossa chegada não sensibilizaram os funcionários do evento – o jeitinho brasileiro menos ainda. Kit de corrida, portanto, só no dia seguinte.

Então estávamos assim em Berlim: eu sem roupas – e não só as de corrida.  

No sábado, na manhã seguinte, havia a Breakfast Run, um treino divertido de 6K aparentemente exclusivo dos inscritos da prova. Só aparentemente.

Emprestei um short de um amigo brasileiro que havia encontrado e fui de All-Star mesmo. Corri no pace da Fran os 6K.  

A corrida terminou no lendário estádio Olímpico de Berlim. Aquele do encontro entre Hitler e Jesse Owens. O mesmo da cabeçada de Zidane em Materazzi.

Partimos então para a expo, onde aproveitaria também para comprar o equipamento de corrida – nada da mala chegar ao hotel.

Berlim: Foto Ralph Tacconi
Domingão cinza em Berlim: Foto Ralph Tacconi

Sou meio chato com tênis. Ou talvez não seja. Não guardo nomes de modelos e os compro em função do peso e do preço. Os tênis de que lembrava o nome não serviam.

Fiquei com um que achei leve e barato.  

Resolvi sair com ele no pé pra ir mostrando para o cabra o que estava por vir. O presságio foi péssimo. Ele me incomodou já nos primeiros passos.

Depois de fazermos compras, voltamos ao hotel às 8 da noite. Exatamente o contrário do que prescrevem maratonistas experientes. Descanso na véspera da prova é fundamental, bradam.

COMO NÃO CORRER UMA MARATONA

ELE DEU A PRIMEIRA AOS 53

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A PROVA

No dia seguinte, trem lotado, percebi que a cidade abraçava o evento. Lá fora, frio, garoa fina, telões mostrando os corredores de elite. Os ídolos. Os extraterrestres que correm a 20km/h.

Todos pouco metros à frente de onde eu estava posicionado. 

Larguei. Mais uma maratona. A major número 1.

Primeira impressão: muita gente. Dentro e fora da prova. Incrível que com aquela temperatura havia pessoas de todas as idades nas ruas a nos incentivar.

Os primeiros quilômetros passavam e eu mantinha o ritmo programado. Procurava correr sobre a linha azul do asfalto que marca a distância oficial. Mas era difícil. Crianças na cerca estendiam seus braços pedindo um cumprimento.

Eu não aguentava, saía várias vezes do traçado para tocar suas mãos. Elas, em resposta, comemoravam. Sorriam. Contavam para suas mães do feito. Um negócio maravilhoso.

Meus pés latejavam. Procurava poças de água para molhá-los e assim tentar aliviar a dor. Eis uma maratona sofrida, como devia ser.

No 17K, ouvi:

“Aê Brasil, tudo bem?” – Não sei como o sujeito descobriu que eu era brasileiro. Não havia dado pistas.

“Tudo sim, brother, e você?”

“Mais ou menos. Está mantendo quanto?”

“Entre 4:45 e 4:50”.

“Posso ir contigo?”

“Bora.”

Ficamos juntos por um bom tempo. Ele não entendia muito bem minhas saídas para cumprimentar as crianças e parecia ficar com medo de me perder. Por fim, depois de 6 ou 7K, isso aconteceu. 

Com dois terços de prova, no 28K, bateu a “bad”. Aquela sensação pela qual muitos maratonistas passam. A hora em que começamos a nos considerar o maior dos idiotas.

Mas ela durou pouco. No 30K, o capetinha desceu do ombro e voltei a me concentrar. O pé continuava a doer, as poças, a aliviar. Mantinha o ritmo.

Feliz ou infelizmente, ainda havia 12K.

Cheguei ao 40K. Já nem me lembrava da dor no pé. Queria mesmo era ver o portão [de Brandemburgo]. E logo o veria, imponente.  A quadriga. Irene. Passei por baixo dele, feliz.

Realizado.

Faltavam 300 metros.

Terminei a maratona com o tempo no relógio oficial marcando 3:23:08. Um minuto a mais do que o do meu GPS. Que importava? Estava bem feliz. Inteiro.

Na dispersão, tudo era diferente do que eu já havia visto. Cerveja de graça, um pós-prova gigantesco muito bem organizado.

Para retirar o tênis do pé foi um parto. Os dedos doíam. Perguntei aos colegas quem havia ganhado, ninguém sabia.

Depois de um tempo, voltei até o pórtico de chegada para esperar a Fran, que em Berlim fez sua segunda maratona. E ela logo chegaria, feliz como sempre. Sorrindo como sempre. Que orgulho.

Mais um capítulo da nossa história havia sido preenchido.

No dia seguinte, ao entrar num café, o atendente me perguntou o tempo com que completei os 42K. Ao saber da resposta, ele e outros funcionários bateram palmas. Mais uma sensação para a pasta “inéditas”.

Voltamos ao Brasil. Sem a mala.

Com tudo isso, até agora não sei o que é mais difícil, se correr uma maratona com um pé a latejar em função do tênis inadequado ou responder à seguinte pergunta: 

“Por que você não viajou com seu tênis de corrida no pé?”

/ 993 Posts

Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

16 Comentários

  1. Avatar
    Eduardo

    Muito bom o texto do Ralph. Gostei muito. Parabéns !!!

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  2. Avatar
    Jean Francisco Zonta

    Ralph, meu irmão de provas, pessoa que fui conhecer por grupo de whatsapp, eu curitibano e ele paulista, pessoalmente fomos nos conhecer num treino na Serra da Graciosa Morretes/PR, e se tornou grande parceiro de provas, Sao Silvestre, Maratonas de São Paulo e Porto Alegre além da Meia do Rio foram excelentes provas q corremos juntos!!
    Agora descubro que este cara além de Corredor é escritor e historiador tbm!!!

    Sempre surpreendendo heim

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    • Avatar
      Ralph Tacconi

      Ah Filhão. Você é o cara!
      Teremos muitas venturas juntos ainda.
      Abraços!

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    Ana Paula

    Ótima matéria Ralph, parabéns bjs Ana Tanabe

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  4. Avatar
    Bruna

    Parabéns pelo texto, adorei!

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    Thiago Fialho

    Sensacional!!! ?????

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    Carlos Stresser

    Parabéns Ralph, animal a trip, sensacional o tempo de prova.???

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    LaisAltube

    Ralph sempre arrasando, nas corridas e nos textos!!! Parabens my friend!

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    Rogerio costa

    O melhor, grande Ralph!!!! Abracao!!!!???

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    Antonio Bellas

    Muito obrigado pela referencia!
    Os elogios são muito sinceros!

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    Camila Lui

    Show de bola!! Parabéns!! que esta seja a primeira de muitas!! vc eh vencedor!! ??

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    Daniel

    Por que não viajou com o tênis no pé? Rsrsrs… Bela história e excelente tempo! Que venha a próxima maratona.

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    Tiago Pavan

    Ralph, muito bom o texto. Melhor ainda sua experiência no primeiro major.

    Parabéns e sucesso!

    Pavan

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  13. Avatar
    Carlos Miranda

    Ralph parabéns!!! Incrível história da viagem, da corrida e da mala perdida que foi só pra dar uma apimentada.

    Te desejo outras dessas, só que com a mala! rs

    Abraço,

    Miranda

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  14. Avatar
    Kadu

    Top!! Sabia que as crônicas no facebook um dia ganhariam maiores proporções. Feliz pela viagem e pelo desempenho pai. Orgulhoso.

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    Iure Fernandes

    Parabéns cara!!! Muito feliz por vc!!!
    Abraço!

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