Nem sempre é melhor quando tudo funciona

Paulo Vieira

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FAZIA UMA CARA QUE RICARDO HENRIQUE, correspondente deste pasquim na Cité Maravilhé, não participava de uma prova oficial de corrida de rua. Seu negócio é correr com as galinhas por 15, 20, 25K. Sai de sua casa na Barra da Tijuca e desaparece.

É um rito diário que cumpre com seu boné, suas músicas em modo shuffle e sua cabeça cheia de levezas.

Pois anteontem ele correu a Rio Cidade Meia Maratona, prova que integra o calendário da Iguana Sports. Alinhou com uma pá de neguinho no Recreio dos Bandeirantes e chegou quase três horas depois em São Conrado, tendo de transpor a maravilha do elevado do Joá no trajeto.

Ao longo da prova, Brocador teve tempo de curtir certo lirismo, rever mentalmente boa parte da história da filosofia ocidental (deteve-se perigosamente em Schopenhauer) e encontrar um amigo que corria em pace ainda mais lento que o seu.

Ele conta como foi.

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DEPOIS DE MUITO TEMPO, voltei a participar de uma prova. E quase isso não acontece. É que ao ver a fila imensa na hora de pegar o kit por pouco não dei meia-volta. Mas logo vi que eram fiéis da Apple indo participar de algum culto ocultista naquele shopping da Zona Sul.

A MARATONA DO RIO, UMA HOMENAGEM

DA BARRA AO CRISTO

A MEIA DE NYC – I DID IT MY WAY

A MARATONA DO RIO, KM A KM

A recepção da Rio 21K estava toda montada no subsolo, bem organizada e naquela hora com pouco movimento. Não levei nem dois minutos para pegar o kit.

Anteontem, dia da prova, estava na porta de meu condomínio aguardando o Andrea, meu amigo suíço que venceu a prova feminina da Rocinha – para os organizadores, ele tem nome de mulher, para finalmente ir ao Recreio. 

Despedi-me do Andrea quando ele foi para o pelotão do elite. Eu fui para o “curral” seguinte, lugar onde não me sinto muito à vontade, confesso, e fiquei a aguardar a largada.

Havia levado até capa de chuva, e agora estava bem incomodado com o sol, a umidade e o calor. Não dava, contudo, para reclamar do trajeto. É o melhor que há para uma meia no Rio. Começa no Recreio e vai até São Conrado. É praia do lado direito e mata no esquerdo.

Já aos 3K senti que minha cabeça não estava na prova. Procurava, debalde, algum conhecido para conversar. No segundo posto de hidratação despejei dois copos d’água na cabeça, mergulhei o boné na água e comecei a ouvir o tênis assobiar com a água acumulada. 

Tudo o que havia chovido no sábado parecia que se evaporava naquele radiador da manhã de domingo carioca.

Chegando à Barra vejo um grupo de corredores fazendo selfies com o [deputado Jair] Bolsonaro, que passeava no calçadão; mais adiante, um grupo bem ensaiado tocava tambores orientais incentivando os participantes.  

Continuava a buscar distrações, algo para me prender à prova. O meu tempo só fazia cair, e a rua que me levaria direto à minha casa se aproximava.

Pensei: abandono, pego meu boné (encharcado) e vou para a casa? Então lembrei do Antônio, um amigo corredor que na semana anterior havia subido comigo ao Cristo Redentor pela primeira vez.

Como ele diz, seu “pace ciência é tranquilo – e por isso ele deveria vir bem atrás. Parei, sentei num banco, tirei as meias e as torci até pararem de pingar. Corri mais um pouco e vi uma menina sendo carregada na maca para a ambulância. Logo depois, outra ambulância.

Realmente eu não conseguia entrar na prova, o fato de meu filho ter voltado a um hospital na antevéspera martelava minha cabeça. Ele está concluindo um tratamento de LLA (leucemia linfoblástica aguda).

Já havia feito tantas vezes aquele trajeto que, sem perceber, adernei para a ciclovia. Estava bem mais à vontade, mas um colaborador da Rio City pediu que eu voltasse à pista. Parei em mais um posto de hidratação, despejei outros copos de água na cabeça e fiquei fazendo hora.

Dali a pouco surgiu o Antônio. Um alívio, pois já tinha decidido seguir até o fim e agora eu tinha alguém com quem prosear.

E fomos conversando, às vezes andando, o esforço agora era realmente nenhum. Alguns dias antes eu havia corrido naquele mesmo local 26K sozinho, e não foi preciso, como desta vez, procurar qualquer motivação.

Via a determinação de algumas pessoas que claramente não tinham condição de estar ali, mas se mantinham firmes no objetivo de chegar.

E vimos mais um senhor desabado no canto do elevado do Joá a receber atendimento. Mais sirenes e ambulâncias.

Chegamos a São Conrado e o clima de festa, com barracas de equipe alinhadas ao longo da pista, deu uma animada. Cruzamos a linha de chegada risonhos e inteiros.

Medalha, toalha, banana, banheira de gelo, massagem, isotônico, a organização nada deixou a desejar. Da chegada fomos direto à estação São Conrado do metrô. A nova linha 4 estava em promoção, a viagem era gratuita, voltei sem pagar nada à estação Barra, que fica bem perto de casa.

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Segundo meu Garmin, eu já corri a distância de 21K 52 vezes. O tempo mais curto, 1:49; o mais longo, justamente o desta prova, 2:50. Corro há 6 anos, desde os 49, é algo que se tornou natural. São cascalhos diários que faço por prazer e até por necessidade.

O dia que por qualquer razão não posso correr tende a parecer incompleto, fica, como diz Djavan, “faltando um pedaço”. 

A corrida, cheguei de novo a essa conclusão, é uma missão mais para a cabeça do que para as pernas. 

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

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