Criaturas da noite

Paulo Vieira

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Tenho dividido o cascalho às quartas-feiras com o jornalista argentino Carlos Turdera, correspondente latino-americano da revista espanhola Dirigentes.

Ambos muy amigos da endorfina,  fazemos às 8 da manhã no parque Villa-Lobos ou na USP o que Treinador Sérgio Xavier já definiu como “ir ao bar e não precisar beber”, ou seja, aproveitar a boa, boníssima onda de correr acompanhado.

SÓ OU ACOMPANHADO?

SÓ OU ACOMPANHADO? – TAPETÃO

Carlos, como eu, já dobrou o Cabo das Tormentas hacie rato, e queria experimentar uma corrida noturna. Então alinhou na Night Run, no começo de abril, e, por sofrer uma queda e requisitar atendimento na tenda médica, acabou por testemunhar um atendimento muito mais crítico.

Ele viu chegar ali o corredor que em poucos minutos perderia a vida no Hospital do Mandaqui, tema de post publicado sexta passada e linkado abaixo.

PRECISAMOS FALAR DA MORTE (NA CORRIDA)

Durante toda a semana,  tentamos obter mais detalhes sobre o acontecimento. A Norte Mkt Esportivo (ou Cooper), organizadora da prova, contudo, preferiu não se aprofundar no assunto. Procurada pelo JQC, disse:

“A Norte Mkt Esportivo lamenta profundamente o ocorrido. Nosso trabalho é focado na promoção da saúde, o que nos faz sentir ainda mais um fato como este.”

A empresa também confirmou que o corredor não havia pagado inscrição, e que o atendimento médico se dá normalmente também para essas pessoas.

Dou passagem aqui para o Carlos relatar como foi sua Night Run.

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Já corri em várias provas paulistanas de 5K até 21K, incluindo duas São Silvestre. Corri sob chuva, sol, com frio, calor, mas nunca tinha corrido uma prova noturna. Fiquei sabendo da Night Run, em 2 de abril, no Sambódromo, e achei que valeria participar.

A data, aliás, lembra o início da guerra nas Malvinas, em 1982. E já que um amigo argentino me visitava em casa, decidimos correr juntos. A escolha, sejamos sinceros, teve mais a ver com a ideia de correr à noite do que com a triste efeméride.

Da inscrição à retirada do kit, da cenografia aos postos de atendimento médico, tudo estava muito bem organizado, bem como funcionavam a contento a música, os shows e o pré-aquecimento.

O que deixou a desejar foi o percurso. Não tem muita graça correr pela erma avenida do Anhembi e do Campo de Marte.

Um detalhe, porém, fez a diferença. Nessa noite havia corridas de 5K e 10K. Eu e meu conterrâneo, o talentoso neurocirurgião Alejandro Vazquez, nos inscrevemos para a prova mais longa. A largada seria às 19h30.

Seguindo à risca as instruções, chegamos com antecedência. Às 19h, o Anhembi era uma romaria, só que em lugar de velas, os peregrinos levavam celulares nas mãos. Bem que Mick Jagger tinha avisado.

A MASSA DO MICK: VEJA RECEITAS FUNCIONAIS PARA CORRER E VIVER BEM

Quando o relógio marcou 19h20, nos endereçamos para o pelotão Azul. Cumprimentos camaradas, últimos alongamentos, contagem regressiva, a enorme coruja símbolo da prova piscando e… zero! Largamos!

Carlos (esq.) e o amigo Alejando na Night Run
Carlos (esq.) e o amigo Alejando na Night Run

Já na pista, a primeira novidade: uma sinfonia de sons sibilantes. Acobertados pelo silêncio na escuridão, os corredores pareciam cantar árias ofegantes sobre uma base drum’n’bass.

A CORRIDA ARGENTINA POR MIGUEL

Nunca tinha ouvido algo semelhante nas corridas diurnas, em que o barulho da cidade abafa até a própria respiração.

Uma segunda impressão: pontos cintilantes avançavam pela pista num movimento serpenteado. Lembrou-me das fileiras de tochas das ladeiras nevadas dos centros de esqui.

Só que aqui o desenho era na horizontal, e as luzes, leds e telas de smartphones. Após o segundo quilômetro, já dava para ver a serpente luminosa vindo no sentido contrário.

Abduzido pelas luzes, cheguei rapidamente à marca do 5K. E não encontrei placas que me indicassem o caminho para completar os 10K.

É que placas não havia. Essa era a chegada da única corrida que estava acontecendo naquele momento. A de 10K só começaria às 20h30, conforme a organização havia informado no dia anterior em e-mail que não vi.

Não havia passado pela minha cabeça que seriam duas largadas diferentes. A primeira informação, com um horário só, ainda hoje está no site.

Peguei então a medalha dos 5K, fiz fotos, troquei parabéns com outros corredores e fui saindo, achando que, para minha primeira corrida noturna, já estava bom.

Para quem foi correr 10K, porém, correr 5K tinha gosto de… 5K. Mas correr três vezes essa distância também não estava nos meus planos. Ainda havia perdido meu parceiro de corrida logo depois do primeiro quilômetro e precisava procurá-lo.

O que fazer? Não sou brasileiro, mas também não vou desistir, pensei. E fui encarar a segunda largada, agora sim de 10K, no horário certo. Resultado: 52’17” para o percurso, como cravou meu fiel app Runtastic. Tinha alcançado minha meta, mas agora tendo corrido ao todo 15K.

E veio outra vez o rito da medalha, frutas etc., mas essa nova etapa contou com um incidente que acrescentaria ainda um tom sombrio à noite.

Uns três quilômetros antes de concluir os 10K, um corredor encostou acidentalmente em mim e eu tropecei e caí na pista. Ganhei escoriações nas mãos e pernas.

Preferi, por isso, passar na tenda médica para um atendimento básico. Mas, estando ali, chegou uma ambulância trazendo um rapaz, bem mais jovem do que eu, que tinha passado mal durante a corrida.

Tentaram reanimação, mas ele não sobreviveu, segundo me confirmou no dia seguinte uma das pessoas que o atendeu.

A imagem do rapaz chegando na maca, com os olhos fora de órbita e se desgrudando da sua vida, tinha um quê de soldado atingido no front. Não me assombrou, mas na noite seguinte tive pesadelos. As imagens de guerra, mesmo que você não esteja em combate ou já tendo combatido, nunca são tranquilas.

Enquanto isso, meu parceiro de corrida, que ficou confuso também com as duas largadas, achou que tinha errado o caminho e fez um retorno para a “pista principal”.

Assim completou duas voltas e foi pegar sua medalha, convicto de que tinha feito os 10K regulamentares. Só várias horas depois veio a saber que correu mais do que o necessário.

Mas nenhum de nós sabia até então o destino daquele anônimo que chegou na ambulância sem conseguir completar sua prova.

Ele correu e não voltou, como tantos outros hermanos que também saíram de casa naquele longínquo abril de 1982 para combater uma guerra que não era deles.

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

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