Missão cumprida

Paulo Vieira

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Quando passo férias na casa do sogrão, em Florianópolis, pego uma Caloi baixa que tem lá e saio para pedalar do Jurerê em direção a Cacupé, um bairro tranquilo escondido na contracosta da ilha, agora objeto de certa especulação imobiliária que muda aos poucos seu skyline.

No meio do caminho, antes de chegar à rodovia que conecta o norte ao centro da ilha, a famosa SC-401, uma ghost bike, registro do passamento de um ciclista, serve para lembrar que acidentes acontecem – e não são assim tão raros.

E, infelizmente, houve outra morte de um ciclista neste domingo. O jornalista gaúcho radicado em Floripa Róger Bittencourt transitava pela mesma SC-401, na ciclovia que acompanha o acostamento da estrada também na altura de Jurerê, quando foi atingido por um carro dirigido por alguém com evidentes sinais de embriaguez, segundo o delegado responsável pelo caso.

Outro ciclista também foi atingido e hospitalizado, e se recupera.

Róger era vice-presidente da Associação Catarinense de Imprensa e corredor cascudo, tendo já publicado neste JQC em setembro de 2014. Deixa mulher, a filha de 6 anos e dois enteados. Nossos sentimentos.

Em Urubici/Arquivo Pessoal
Em Urubici/Arquivo Pessoal

Republico o texto do Róger neste pasquim, que também pode ser acessado pelo link abaixo.

MISSÃO CUMPRIDA

 

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Já participei de várias provas com diferentes características, incluindo aí três maratonas – uma delas a Corrida do Pateta, na Disney, onde você corre a meia no sábado e os 42K no domingo. Já corri no Deserto do Atacama e na França. Mas a maior dificuldade foi aqui mesmo, na minha linda Florianópolis.

Quando decidi fazer os 42K do Costão do Santinho, já sabia que seria pedreira, mas não imaginava que seria tanto. Foi uma prova de superação, satisfação e conquista, pois terminei no lugar mais alto do pódio. Um pouquinho dessa história relato aqui – a história completa só consigo guardar na minha cabeça e no meu coração.

Eu não estava treinando muito os longões desde que decidi ir para o triatlo. Tanto que o meu treinador, Antonio Saccomori, queria que eu fizesse só os 21K do Costão. Como miro o El Cruce (100K nos Andes), achei que seria um bom teste. Além disso, conhecia um pouco o percurso, já transposto em provas de revezamento.

Treinei nos dois costões, os trechos mais duros, 15 dias antes da prova. Foi bom para dar segurança, mas desgastou. Depois, junto com os parceiros do Clube de Corrida Formacco, organizei uma logística de hidratação e troca de tênis para os vários terrenos. No time, Joelson Coelho, que correria comigo do 12K ao 30K, Edson Bez, que ficaria responsável por água, gel e roupas, e Jacinto Silveira, que iria dirigir o carro. Os três são meus companheiros de treinos e corridas e estariam lá só pela camaradagem.

 Na véspera, o sono não foi dos melhores – o temporal que caiu na ilha ajudou a aumentar a ansiedade. 

A largada foi às 9h, tanto para a meia como para os 42K. Larguei forte, de luvas (para me agarrar sem medo na vegetação, nas pedras e no piso), boné e tênis de trilha. Nos primeiros 500 metros estava a descida para a praia do Santinho – único trecho com asfalto da prova toda. Ali o pace foi abaixo de 4′/min. Logo chegava o primeiro desafio – subir e contornar o Costão dos Ingleses. No treino  a gente havia se perdido aqui, o que colocava uma adrenalina maior no obstáculo. Subi o morro lentamente. Muito barro, pedras, árvores e trilhas fechadas. Vários atletas me ultrapassaram.

Vencido o Costão dos Ingleses, hora de subir a rampa do Santinho. Lá em cima minha turma me esperava para um pit stop rápido. Tudo funcionou bem. Cruzei por dentro do hotel e vieram as dunas. Para mim, a parte com areia fofa é sempre a mais difícil. Sou pesado e o corpo afunda, mesmo correndo leve. Mas o ritmo foi bom, não parei de correr em nenhum momento.

Ao ouvir o barulho do mar da Praia do Moçambique, percebi que o mais difícil havia ficado para trás. E mais do que isso, sabia que logo encontraria a minha equipe.

Cheguei ao ponto combinado e nada. Pensei que logo logo estariam lá, mas mesmo assim passei a economizar a água (tinha duas garrafinhas, uma em cada bolso da bermuda) e retardei ao máximo o uso do gel que levava comigo. Um alívio veio na altura dos 15K. Os voluntários da prova indicavam para todos o retorno às dunas, mas a turma dos 42K deveria seguir em frente pela estrada de chão. E foi o que fiz, na esperança de encontrar meu time antes de cair para a praia novamente, pois lá não poderiam chegar. E a entrada do Moçambique estava próxima.

Na altura dos 17K, a primeira fisgada na panturrilha esquerda. Era um sinal do que viria mais à frente. Entrei em Moçambique e nada da turma. Mas ali havia água. Aproveitei para reabastecer e ainda levei uma garrafinha na mão por garantia. Já passava meia hora do tempo de tomar o gel e eu segurava, pois só tinha um e ainda faltava metade da prova.

Na praia, o sol inventou de aparecer. Uma dificuldade a mais. Por outro lado, nos 6K do Moçambique à Barra da Lagoa apenas um terço do trajeto tinha areia fofa. E a areia fofa do Moçambique é fofa mesmo.

Quando caí na praia, vi oito atletas na minha frente. Decidi que iria ultrapassar os mais próximos e encostar no grupo intermediário antes de chegar à Barra. Corri próximo ao mar, que estava mais firme, a um  pace de 4’40″.

Sai da areia para entrar no Bosque do Rio Vermelho. Ali tive uma surpresa positiva. Havia um posto de gel da prova. Agarrei dois. Perto do 25K vi um corredor sair do mato em minha direção. Era o Joelson, que tinha achado o caminho pelo sentido oposto.

 Entramos na praia de novo e logo depois retornamos à estrada de chão. Ali estava a equipe completa. Troquei a camisa sem parar de correr e fomos em frente.

Na altura dos 32K avistei o sujeito que o Joelson havia dito antes estar à minha frente, em décimo lugar. A ultrapassagem ainda demoraria dois quilômetros. As pernas davam sinais de câimbras, mas dava para correr. Nessa hora eu já avistava o Costão do Santinho e pensava: vai dar pra completar bem, as pernas vão aguentar.

Mas veio o susto. Lembra aquela entrada que os atletas da maratona passaram reto? Agora era minha vez. Dunas.  Reduzi, e logo o cara que eu tinha acabado de ultrapassar voltou a se aproximar. Se não tinha mais como melhorar o ritmo, queria mostrar ao outro corredor que eu ainda tinha forças. Foi o que fiz.

Depois das dunas, as câimbras voltaram com força. O Joelson havia ficado para trás, pois parara para conversar com a equipe. Como não o vi, e tampouco vi o atleta que me perseguia, parei. Decidi caminhar até que o Joelson voltasse. Foram só 150 metros, mas suficientes para ajeitar as duas panturrilhas.

Joelson disse que iria cruzar o costão comigo. Um parceiro do lado para dar força é sempre muito bom.

Praia à vista e a entrada do Costão também. Eu sabia que faltavam 4K de morro e trilha em subida e depois mais 1,5K entre praia e asfalto. Nessa altura, pernas, pulmões e coração não corriam mais. Eu era só cabeça.

No pé do morro estava o meu treinador, que seguiu com a gente. A subida foi dura. As câimbras aumentavam, e toda a vez que eu ameaçava parar, os parceiros não deixavam. Com tênis liso entrei no lamaçal, onde caí sentado pelo menos três vezes. A estratégia era não escolher terreno e sim tocar o pé na lama. Numa dessas afundei até o joelho. 

Antes de sair do Costão do Santinho encontramos um atleta passando mal. Pedi aos colegas que ficassem ali para ajudá-lo. 

Pisei na areia e agradeci por ter sobrevivido ao morro. Juntou-se a nós o Paulinho Lima, outro atleta do Clube, que acabara de vencer no geral a prova dos 21K. Cheguei à rampa. Correr ou caminhar? Segui a orientação do professor Antonio: caminhar com passada bem larga.

Olhei pra cima e vi o primeiro troféu no meio da subida final. Milha filha Sofia, 4 anos, me esperava ao lado da minha mulher e incentivadora, Karin Verzbickas. A pequena gritava:  “Papai, papi”.

A emoção vei fundo e as lágrimas também. Faltavam 500 metros. Acabada a subida, já dava para ver o portal a 300 metros. Então as duas pernas travaram simultaneamente. Não andavam mais. E a galera gritando no meu ouvido que ninguém iria me carregar. A cabeça entrou em ação e cruzei a linha de chegada correndo, chorando de alegria, com todos os meus parceiros correndo atrás.

Se chegar já era uma vitória pessoal, cruzar em décimo lugar na geral foi maravilhoso. Mais: com o tempo de 4:22, fiquei em primeiro lugar na minha categoria – e o primeiro entre os atletas com mais de 40 anos.

Mais um troféu na prateleira, mas o principal prêmio foi vencer o desafio, ganhar confiança para iniciar os treinos para o El Cruce e ver como tenho amigos capazes de perder um dia só para me acompanhar e estimular, assim como sentir o carinho a minha família.

O êxtase da chegada foi vencido pela alegria.

 

 

 

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Paulo Vieira

Influenciado pelo velho “Guia completo da corrida”, do finado James Fixx, Paulo Vieira fez da calça jeans bermuda e começou a correr pela avenida Sumaré, em São Paulo, na adolescência, nos anos 1980. Mais tarde, após longo interregno, voltou com os quatro pés nos anos 2000, e agora coleciona maratonas – 9 (4 em SP, 2 Uphill Rio do Rastro, Rio, UDI e uma na Nova Zelândia), com viés de alta – e distâncias menos auspiciosas. Prefere o cascalho de cada dia às provas de domingo e faz da corrida plataforma para voos metafísicos, muitos dos quais você encontra nestas páginas. Evoé.

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